Economia

Laércio Albuquerque: 'O sucesso não depende só do ensino'

Ex-catador de papelão comanda gigante da tecnologia e inspira jovens empreendedores

Nelson Cilo
postado em 08/05/2019 06:00
Ex-catador de papelão comanda gigante da tecnologia e inspira jovens empreendedores
São Paulo ; O presidente da Cisco do Brasil, Laércio Albuquerque, tem inspirado muitos jovens empreendedores a nunca desistir. Ex-catador de papelão e ex-office boy, atualmente comanda a operação brasileira da gigante de tecnologia Cisco. O executivo afirma que todas as empresas, de todos os setores, estão vivendo o furacão da transformação digital. Há mais de 30 anos na área de tecnologia, Laércio iniciou a carreira em empresas como BCN e Duratex, antes de assumir a CA Technologies, por onde atuou por 20 anos, e a Cisco do Brasil. Confira a entrevista.


Como está sendo o ano de 2019 para a Cisco?

O nosso entusiasmo é muito grande. Não só por hoje ou pelo momento que a gente vislumbra pela frente, mas pelo que estamos sentindo ao longo dos últimos anos. Mesmo nos períodos de grandes desafios políticos e econômicos, o setor de tecnologia cresce dentro das corporações. A tecnologia surge como uma solução, um caminho para diminuir as deficiências operacionais e de redução de custo. No mundo hoje, em que o consumidor e o cidadão se tornaram completamente digitais, as empresas não podem demorar a tomar decisão. Ou você transforma sua empresa, entrega seus produtos e serviços, através do canal que o cliente está buscando, ou a empresa está fadada à morte.

Então a crise acaba beneficiando as empresas de tecnologia?

Sim. Houve um tempo em que a tecnologia, a infraestrutura toda da conectividade era em um PC, depois passou a ser em um laptop, aí passou para o smartphone, e agora a gente entrou definitivamente na era da internet das coisas. A internet das coisas é o grande ponto de mutação da era futura. Não estamos falando de milhões de dispositivos conectados. Estamos falando de bilhões de dispositivos. Isso requer uma completa plataforma de conectividade de um jeito diferente. Tem uma questão chave que é a ciber-segurança. O assunto sempre foi sério em todas as corporações, mas num mundo onde se está falando em bilhões de coisas conectadas, há bilhões de deficits de segurança. Por isso, o nosso crescimento nessa área é impressionante.

Para a Cisco, qual é a prioridade em termos de segurança ou cloud (nuvem)?

Todas. Mas um destaque é na forma como as empresas estão transformando a maneira como seus colaboradores interagem e se comunicam. As videoconferências, os callcenters, as mensagens, o home office... tudo isso é coisa do passado. Atualmente, falamos em anywhere office, escritório em qualquer lugar, na palma da sua mão. No mundo ágil digital, onde você tem um gestor de vendas no Brasil, um engenheiro na China, um gestor de pós-vendas na Dinamarca, eles têm que conversar e comunicar no mesmo nível de agilidade. As empresas estão buscando isso.

Mas existe resistência a esse modelo de relação de trabalho, não é?

Sim, existe, mas já está acontecendo em todos os setores. Basta olhar para o setor financeiro, o de serviço, o varejo. As empresas não precisam fazer isso da noite para o dia. Elas começam fazendo isso com o escritório central primeiro. Com a tecnologia, hoje é possível um mineiro trabalhar debaixo da terra, em Minas Gerais, e estar se comunicando através de conectividade com o escritório central em São Paulo. Dentro de hospitais, a mesma coisa. Eu fiz nessa semana o retorno do meu check-up com o médico do hospital por tablet. Não tive de estar lá pessoalmente. Então, as transformações, em geral, estão acontecendo fora das empresas de tecnologia. Estão em todo lugar.


Quais são os setores da economia que estão sofrendo mais com a transformação digital?

Todos os setores, sem exceção, estão nesse furacão. Algumas atividades estão mais no olho, no vértice do furacão. Outros estão na borda, lá em cima ainda do furacão. Mas de algum jeito vão ser engolidos também. Quando se olha para o vértice do furacão, é possível enxergar o setor financeiro, o varejo, o setor de mídia, que está sendo fortemente afetado por isso. Na borda desse furacão, pode-se observar o setor de óleo e gás, que não está sendo tão afetado ainda, assim como farmacêutica e manufatura. Mas é fato que todas as empresas precisam assumir o digital.

Há um esforço do governo federal para tentar estimular o empreendedorismo, mas isso não gerou resultados práticos ainda. Por quê?

Vejo como algo extremamente positivo. Existe um estudo, o Digital Readers, feito recentemente em 118 países junto com a Cisco. Ele classifica quais são os países mais preparados para vencer o desafio da era digital. No ranking, o Brasil está em posição intermediária, mas há dois pontos em que mais se destaca negativamente: ecossistema de startups e educação digital.

Educação digital?

Sim. Hoje existem 500 mil vagas abertas no Brasil sem pessoas qualificadas para ocupar a posição. No futuro, milhões de empregos serão eliminados, mas outros milhões de empregos serão gerados. A preocupação é se o Brasil vai conseguir ser vencedor na era digital. Para isso, precisa se preparar através de inclusão. Porque a gente fala muito da educação primária, universitária, mas não é só isso que importa. A educação digital é como a gente prepara esses jovens de hoje para criar um exército de programadores, de adultos que entendam de fundamento de rede, de internet das coisas, de programação. Isso é educação digital. Precisa preparar e criar um exército novo para poder vencer e ocupar essas vagas.

Educação digital é qualificação, formação profissional?

Exatamente, formação digital. A Cisco, inclusive, investe bastante nisso. Temos um programa muito bacana, mundialmente, chamado networking academy, que já formou no Brasil mais de 200 mil pessoas. Um programa voltado para a empregabilidade. As empresas não vão vencer se não fizerem a inclusão da sociedade. A Cisco investe muito nisso.

O objetivo é formar e absorver essa mão de obra?

Não temos como absorver, já que a Cisco tem por volta de 1.500 funcionários no Brasil. Mas o ecossistema de geração de emprego na Cisco do Brasil é por volta de 6 mil empregos. Além disso, desses alunos qualificados, mais de 90% se empregam no mercado de tecnologia, e não necessariamente na Cisco. As grandes empresas como Cisco, Oracle, SAP e Microsoft estão juntando forças para transformar a sociedade.

Os ciber-ataques representam alguma ameaça ao processo de transformação digital das empresas?

Não são uma ameaça para o processo de digitalização, porque ele vai acontecer de qualquer jeito. O que tem que acontecer é uma preparação das empresas. Não adianta construir a casa toda e, depois de pronta, se preocupar como vou fechar as janelas. Tem que fazer parte do alicerce. Isso tem que fazer parte do processo inicial. Quando você está desenhando, tem que pensar nisso.

É possível dimensionar a força dos ciber-criminosos?

A rede de ciber-criminosos é gigante. É uma organização que tem pessoas que trabalham nela sem saber que estão fazendo isso. Um vai e pega uma senha, outro vai e pega um dado, uma informação, um link.

Sua trajetória profissional tem sido inspiradora. Você veio de baixo e hoje é presidente de uma grande organização. O que o passado lhe ensinou?

Já fui catador de papelão e office-boy. Mas falo com muita humildade que cheguei até aqui não porque sou bom, mas porque tive oportunidade. Muita gente me ajudou, me abriu as portas, me deu uma chance. Eu frequentei escola pública a vida toda. A questão, então, é que o sucesso não depende apenas do grau de ensino, mas da criação de oportunidades. O aprendizado que eu trago hoje é que eu sou hoje um filho da oportunidade desse país. Ou seja, se eu consegui não é porque eu sou o bom, mas porque eu tive oportunidade.

O Brasil, portanto, deve ter muitos talentos por aí que só precisam de uma oportunidade.

O Brasil está repleto de talentos espalhados em todo lugar. O que precisa é que a tecnologia possa ser usada para levar essas oportunidades e fazer a conexão de talento com a oportunidade. Vão aparecer gênios, mas não só isso, vão surgir principalmente pessoas que vão aproveitar as oportunidades. Eu tenho a convicção de que é quase impossível levar todo cidadão para um centro de educação, mas com a tecnologia você consegue levar a educação na palma da mão de todo cidadão. Porque 90% da população têm celulares. Temos que levar a tecnologia, levar educação digital, para preparar essa avalanche de empregos que serão gerados no futuro e conectar os talentos escondidos às oportunidades que estão implícitas. Precisamos acima de tudo trabalhar pela inclusão e pela melhoria da qualidade de vida do cidadão brasileiro. Esse é o aprendizado que eu trago e é o que move meu coração a fazer mais.

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação