postado em 09/06/2019 04:05
Embora ainda distante de ir a voto no plenário, caminha para o fim a discussão do mérito da reforma da Previdência na Câmara. Mais que em outras tentativas de ajuste das aposentadorias ao viés demográfico e de correção das iniquidades do sistema ficaram claros os interesses contrariados e sua indiferença ao colapso fiscal em curso no país.A agenda desses interesses, majoritariamente do setor público, em especial da área federal e do Judiciário, é simples: conservar seus regimes próprios de aposentadoria com as exceções que os distinguem como cidadãos de primeira classe ou, se o Congresso resistir, como parece encorajado a fazer, ao menos amenizar a reforma para eles.
Dezenas das emendas propostas ao relator encarregado de dissecar a proposta de reforma constitucional (PEC) patrocinada pelo governo Bolsonaro tratam disso. E outras tantas pedem a extensão do regime especial a categorias hoje não contempladas pela orgia fiscal, como oficial de justiça, garimpeiro, guarda municipal etc.
Crise econômica, 77% de brasileiros vivendo com renda familiar de no máximo cinco salários mínimos, que se aposentam aos 65 anos com um a um e meio salário, desemprego, deficit público, governos sem caixa para gastar com o básico, nada disso importa a esses afortunados.
Tais lobbies têm larga representação na Câmara e no Senado, estão presentes em todos os partidos, do PSL de Jair Bolsonaro (ele mesmo atuou na Câmara por 28 anos como porta-voz de corporações policiais e militares) às legendas de esquerda. Não é difícil identificá-los.
Muitos se elegem com nomes eleitorais que revelam a quem servem: major fulano, delegado sicrano, juiz de tal, general, cabo, doutor etc. No Congresso, formam maiorias compondo-se, conforme o projeto, com outras frentes de lobby, como dos ruralistas e evangélicos.
O comum a tais grupos é a defesa de suas vantagens e o veto ao que discordam. Se algo lhes escapa ao controle, recorrem ao guardião e intérprete da Constituição, o STF. Lá encontram tratamento especial e desigual em relação à maioria da população, sob o pretexto do direito adquirido do benefício previdenciário, também uma iguaria excepcional usufruída pelo Judiciário. O pano de fundo da estagnação econômica e social está aí, e nos fundamentos da Constituição de 1988.
Paradoxos da ordem legal
O mérito dos cinco meses de governo Bolsonaro foi abrir a porta para a discussão mais transparente dos paradoxos da ordem constitucional. Ela ampliou direitos sociais e descentralizou recursos para estados e municípios sem tributação progressiva nem base produtiva (leia-se: PIB) suficientemente ampla para bancar o Estado de bem-estar social e a máquina pública ampliada em nível federativo para administrá-lo.
Essas premissas, além da distorção dos benefícios desmotivados para o funcionalismo público, como estabilidade no emprego, aposentadoria integral e correção equiparada ao pessoal da ativa (as duas últimas parcialmente revistas na reforma de 2003), fizeram a estagnação da economia ser datada. É o que está aí: a exaustão do regime de 1988.
O equívoco de Bolsonaro foi postar-se como estuário do sentimento hostil de setores da sociedade aos políticos e ao STF, fornido pela Lava-Jato. Incorporou-a ao governo ao chamar Sérgio Moro para o seu ministério e explicitou a intenção ao trombetear a retórica da ;velha política;, que ele, dito ;novo;, cuidaria de redimir.
Quem tem a autoridade
É importante entender os interesses em luta para não ser joguete de lobbies que buscam confundir. Há várias crises superpostas. Uma crise é a do Estado ingovernável, devido à aliança informal entre grupos da burocracia com as categorias de profissionais liberais que lucram com o cipoal regulatório e legal e com os setores econômicos retrógrados.
Outra crise é a da invasão de competências do legislativo, seja pelo judiciário, seja pelo executivo. Isso também se dá nos EUA, inspiração de nosso presidencialismo, apesar do que escreveu James Madison, um dos ;pais; da Constituição de 1789 e até hoje em vigor: ;No governo republicano, a autoridade legislativa, necessariamente, predomina;.
Sob ataque de Bolsonaro e das milícias virtuais que o apoiam, aqui o Congresso, sob a liderança do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que já se expunha como grande fiador das reformas, mais até que Bolsonaro, mostrou-se disposto a retomar o protagonismo político.
Nem o lobby antirreformista vai ter o que quer nem o governo, mas a reforma será feita, e outras, como a tributária, virão na sequência.
Armistício chegou tarde
Nas últimas duas semanas, o governo parece tentar um armistício com o Congresso à espera da aprovação da reforma da Previdência sem muito corte na expectativa de o sistema poupar R$ 1,1 trilhão em 10 anos.
Mas é também reflexo da percepção de que só ela não basta para fazer a economia deslanchar. Aumentam as pressões para que o ministro Paulo Guedes flexibilize de algum jeito o seu liberalismo enraizado. Vale, no caso, a recomendação do senador Marco Rubio, estrela do partido de Trump e mais direitista que Bolsonaro, para a economia dos EUA.
;Crescimento econômico é construído, não desbloqueado ou gerenciado. Produtividade é um projeto. As decisões sobre o valor final devem ser decididas em algum lugar ou por alguém. Nos EUA, terceirizamos essas decisões de forma tão completa para a mera preferência do mercado que tornamos fácil negar que uma decisão deve ser tomada;, disse ele.
No novo mundo em formação, pragmatismo vale mais que dogmatismo.