São Paulo ; Pérsio Arida, 67 anos, é um homem discreto. Silencioso, parece pisar leve, quase levitando. É assim que ele entra no local combinado para a entrevista ao Correio. Os clientes do café localizado num shopping não percebem a chegada do economista, um dos nomes mais importantes do Plano Real. Durante 40 minutos, Arida falou sem parar sobre o Real, mas, com elegância, evitou fazer autorreferências ou mesmo comentar sobre a atual vida profissional e pessoal. Estava concentrado no plano que mudou a vida dos brasileiros, mas que, como ele mostrou, ainda precisa de cuidados ; as reformas ; para continuar exitoso. Ao falar dos desafios, lembrou de detalhes da formulação há 25 anos. Arida diz que boa parte das conquistas obtidas pelo real se perderam, sobretudo, no governo de Dilma Rousseff. Ele acredita que foram os erros cometidos pelos petistas que resultaram na eleição de Jair Bolsonaro. No momento em que a mais longeva moeda brasileira completa um quarto de século, ele classifica de ;doidice; a proposta de criar uma divisa única entre o Brasil e a Argentina, o ;peso real;. Graduado pela Universidade de São Paulo e doutor pelo Massachusetts Institute of Technology, Arida deu aula, entre outras instituições, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, berço dos criadores do real. No início do plano, ele presidiu o Banco Central (janeiro a junho de 1995). Para o economista, o grande desafio do Brasil, hoje, é retomar o crescimento sustentado. Entre 2011 e 2020, o país terá a pior década da história, com avanço médio de 0,9% ao ano do Produto Interno Bruto. Depois de tomar um chá e uma água, Arida saiu como chegou. Pisando leve, sem chamar a atenção. A seguir os principais trechos da entrevista:
Quais os desafios do real após 25 anos?
Convém separar duas dimensões do real. A percepção mais evidente para a opinião pública era a troca do padrão monetário, o uso de uma moeda virtual que não havia sido feito nem no Brasil nem no mundo. Então, foi uma política de estabilização sem precedentes e extraordinariamente exitosa, que, de fato, levou à eleição de Fernando Henrique Cardoso. Ele não teria sido eleito se não fosse isso. Tudo isso acontece, em parte, por uma série de coincidências. Fernando Henrique foi o terceiro ministro da Fazenda do Itamar. Tinha a confiança de um grupo de pessoas que eram todas oriundas da PUC do Rio de Janeiro. Duas dessas pessoas tinham feito um trabalho acadêmico 11 anos antes, que chamavam de ;plano Larida; (uma junção dos criadores André Lara Resende e Arida). E ali se previa uma moeda virtual, que acabou sendo a URV. Assim, foi uma situação muito específica ligada a uma demanda da população pela estabilidade.
Qual era a expectativa de vocês?
Nossa expectativa era de um prazo de dois a três anos para a população aderir aos contratos, entre a URV e o real. A demanda era tanta que foi de dois a três meses, em uma circunstância extraordinária, na qual o ministro da Fazenda tinha uma ascendência sobre o então presidente da República, Itamar Franco. O ministro da Fazenda, que era qualificado ; e assistia às reuniões da equipe. Ao negociar no Congresso, sabia o que estava negociando. Houve um conjunto específico de circunstâncias que acabou levando a um resultado muito exitoso, porque era o plano certo para o Brasil, ao contrário dos anteriores. Foi um plano completamente original, visto com descrédito por muitos, porque não se acreditou que alguém no Brasil teria um plano tão original assim. Por coincidência, os autores o estavam colocando em prática. A troca de moeda, a moeda indexada, o Fundo Social de Emergência, o ajuste orçamentário prévio, mais a renegociação da dívida externa, somada à entrada do real, essa é a parte mais visível. Esse conjunto de pessoas seguiu no governo, e, depois do real, teve o segundo passo.
Como foi esse segundo passo?
Com as reformas necessárias para sustentar o plano. Era uma agenda de modernização do país. Ninguém conduziu argumento do ponto de vista ideológico, ninguém falou: ;Olha, precisa quebrar o monopólio da Telebras, porque nós somos liberais;, embora, naquela época, todos os economistas liberais estivessem no governo. Mas a maneira de fazer sempre foi para sustentar o real. Em uma primeira etapa, foi dada uma ênfase enorme às mudanças que aumentavam a produtividade. Foram as privatizações, a queda de monopólios, a abertura da economia, a criação de agências reguladoras para possibilitar o investimento de infraestrutura. Em uma segunda fase, ajuste das contas públicas. Tentou-se a reforma da Previdência, que, infelizmente, falhou por um voto. O Brasil teria sido outro se não tivéssemos perdido por um voto. Depois disso, teve a flutuação cambial, o lançamento do tripé macroeconômico. Enfim, todas as bases do Brasil moderno foram criados no governo Fernando Henrique, na sequência do Plano Real. Para sustentar a inflação baixa, você precisava fazer reformas estruturais.
E o que aconteceu de lá para cá?
O que aconteceu do Lula em diante foi uma progressiva reversão das reformas. A privatização parou. Só depois de vários anos começou a entrada de capitais e deram início às novas concessões. Estatais foram recriadas, o processo de abertura da economia parou, o superavit primário (economia para o pagamento de juros da dívida) de 2,5% do Produto Interno Bruto (PIB) foi sumindo, caiu para 2% (desde 2014, o país registra deficit fiscal). O conceito de metas de inflação também foi desaparecendo, tanto que a inflação chegou a 10% ao ano. No governo Dilma, os artificialismos foram aumentando, o congelamento de preços da gasolina, a intervenção estatal, que tinha diminuído com Fernando Henrique, foi crescendo, desde o uso agressivo dos bancos públicos. Com a entrada do governo Temer, houve uma retomada da agenda de reformas. E conseguiu, apesar de não ser um governo eleito, surpreender todo mundo pela quantidade de reformas. Se você olhar o teto de gastos, o fim da TJLP (Taxa de Juros de Longo Prazo), a reforma trabalhista, todas são reformas com o espírito do real. Temer quase aprovou a reforma da Previdência. Foram reformas que vieram para modernizar no espírito do real. O governo Temer retomou uma agenda de reformas.Os governos petistas atrapalharam o real?
A história do real tem uma dimensão visível, que é a troca de moedas, e a dimensão das reformas para sustentar o plano. Houve, durante o governo petista, uma reversão das reformas, e isso acabou, na verdade, com uma inflação de 10% ao ano. Com o governo Temer, retornou-se às reformas e a inflação voltou a cair novamente. O grande desafio, hoje, é uma questão de estratégias. Durante o Plano Real, do ponto de vista constitucional, houve uma ênfase grande em, primeiro, avançar nas reformas que aumentavam a produtividade. A Previdência apareceu somente três anos depois, em 1998. As primeiras batalhas foram as quebras de monopólios.
E o governo Bolsonaro?
O governo Bolsonaro inverteu isso, colocou a reforma da Previdência na frente, e as reformas que, de fato, aumentam a produtividade, como a tributária, ficaram para outro momento. É uma questão de estratégia. O grande desafio do Brasil, hoje, é o crescimento. Não é mais o desafio da inflação baixa, porque, com o Plano Real, isso está consolidado. Ou seja, o governante que quiser inflacionar a economia vai perder a eleição. Hoje, o grande fiador da estabilidade é, de fato, a opinião pública, o que me deixa muito satisfeito. Quando a opinião pública não está a favor da reforma, ela é sempre passível de reversão. Nesse sentido, acho que a estabilidade de preços é uma transformação permanente. É difícil dizer isso porque o Brasil é sempre uma caixa de surpresas. Mas, até onde se enxerga, o maior desafio hoje não é o desafio inflacionário, mas, sim, o de crescimento.Isso acaba colocando o real em risco?
O grande desafio é sempre quando a economia cresce muito. Como você vai segurar esse crescimento sem ter inflação? O segredo é a produtividade. Sem produtividade, pressiona a inflação. Nosso problema, hoje, é que a produtividade cresce pouco. Neste ano, vai crescer até menos do que deveria, porque o impacto da Argentina foi substantivo e a discussão da Previdência, o ;tudo ou nada; em torno dela, gerou um efeito colateral negativo em todo o empresariado, no Brasil e no exterior.Isso foi um erro do governo Bolsonaro?
São escolhas. Se foi um erro, o tempo dirá. Quando você apresenta uma reforma ambiciosa e diz ;é tudo ou nada;, você gera uma reação e aumenta as chances de aprovar a reforma às custas de colocar o empresariado em um processo de espera.Diferentemente da reforma proposta por vocês e da feita no governo Lula, a do atual governo é muito ampla, não é? Há vários inimigos ali para combater.
Como eles dizem, é muito cedo para avaliar. A reforma proposta por Temer chegou muito perto de ser aprovada. Se a atual reforma vai ser mais ambiciosa, ainda não se pode dizer, porque estamos no processo (de discussão). Vai sair mais robusta que a do Temer? Essa é a pergunta relevante. Não adianta comparar com o que era o Plano Real há 25 anos, porque o Brasil era outro, o problema era muito menor. Se a estratégia atual é correta ou não, só se saberá depois, comparando com a reforma que quase foi aprovada por Temer.O senhor falou de pessoas que achavam que o real não daria certo. O senhor teve alguma dúvida no momento inicial?
Todo mundo que passou pelo governo vai lhe dizer a mesma coisa: você espera que aconteça 100, consegue 50, o mínimo necessário. No exercício da vida pública, particularmente no Executivo, do ponto de vista do Banco Central e do Ministério da Fazenda, sempre existiu isso de lidar com frustrações. Gostaríamos que o ajuste fiscal do Fundo Social de Emergência tivesse sido mais robusto do que foi. Gostaríamos que Itamar não tivesse aumentado o salário mínimo na virada do ano, o que desequilibrou as contas públicas. Enfim, você vai lidando com os problemas. Do ponto de vista da mecânica, nunca tive a menor dúvida. Do ponto de vista das condições fiscais e sustentabilidade, foi sempre um problema muito sério, porque o que se conseguia estava muito aquém do que, coletivamente, gostaríamos.Quem são as pessoas que podemos elencar do início do Plano Real?
O grupo do lançamento era composto, principalmente, por pessoas da Pontifícia Católica do Rio de Janeiro. Não só, mas predominantemente. Os mais sêniores, como Pedro Malan, tinham feito pessoas como Gustavo Franco e Elena Landau. O André Lara Resende ficou um pouco, não até o fim. Quando Gustavo Franco saiu, entrou Francisco Lopes; quando Francisco saiu, entrou o Armínio Fraga. Eram todos ou professores ou alunos de lá, na virada dos anos 1970 e no começo dos anos 1980. Uma coisa é o time de formulação; do ponto de vista de cargos públicos, de reuniões, era muita gente.O senhor é esperançoso em relação ao cenário do país hoje?
Em alguns aspectos, o cenário se tornou mais fácil do que no começo do Plano Real. Hoje, você tem uma moeda consolidada, uma inflação muito baixa. Se olhar historicamente, todo mundo era a favor do Plano Real, mas, feita a troca de moeda, as pessoas se perguntavam: ;Vai acontecer o que aconteceu com as outras moedas?;. A desconfiança do padrão monetário não existe mais.E as propostas de Bolsonaro e do ministro Paulo Guedes de criação do ;peso real;?
Isso é doidice. Não se tem, hoje, uma desconfiança do padrão monetário, o mundo é muito mais favorável. Quando o plano entrou, teve a crise do México, com ataque cambial. Naquela época, o Banco Central tinha US$ 27 bilhões de reserva. Hoje, são US$ 380 bilhões. O mundo, hoje, está ameaçando desacelerar, mas não se tem crises nos países emergentes. O quadro mais difícil é na área política, porque a fragmentação partidária é muito maior do que naquela época. Os problemas do presidencialismo de coalizão são muito mais agudos hoje do que eram naquela época. Para você conseguir base parlamentar, é muito mais difícil hoje, você precisa negociar com mais gente etc. Diria que, do ponto de vista da gestão econômica, hoje é muito mais fácil do que era no começo do Plano Real. Do ponto de vista da aprovação política das reformas, hoje é necessário ter muito mais articulação.
A economia ditou os rumos eleitorais brasileiros ao longo dos últimos 25 anos?
Sim e não. Na eleição de Fernando Henrique, na primeira e na segunda, o Plano Real foi elemento decisivo. Depois, teve muito azar. Houve crise doméstica, crise da Rússia, crise de Hong Kong, mais o apagão. Ele teve tropeços em todo cenário externo. O Lula, ao contrário, foi um centro de sorte, porque o mundo conspirou a favor dele. No caso de FHC, economicamente falando, sobre os choques econômicos, além do desgaste do apagão, mais o ajuste fiscal, mais a flutuação cambial, que gerou uma percepção de estelionato eleitoral, mais a Previdência, que também foi o pior dos mundos no governo dele (porque se gerou tantos gastos e não aprovou). Tinha também a resistência a privatizações, que era muito maior. Acho que teve um desgaste econômico ali que também influenciou a eleição do Lula, em 2002. No caso da Dilma, se o país não tivesse tido uma gestão tão desastrada, uma recessão da qual ainda não nos recuperamos, minha sensação é de que o impeachment não teria prosperado. Tinha razões jurídicas e legais, mas foi um processo político antes de mais nada.
Como assim?
O desgaste econômico do governo Dilma erodiu parte da base de sustentação. Se o impeachment teria acontecido ou não, é difícil de dizer, mas teve um peso. Já a eleição de Bolsonaro, acho que foi uma exceção, porque é um caso em que, por conta da Lava-Jato, houve uma percepção de que todos políticos eram corruptos ou coniventes com a corrupção, e, aí, abriu-se o campo para um outsider. Se Luciano Huck tivesse concorrido, poderia ter ganhado. Se Joaquim Barbosa tivesse se candidatado, poderia ter ganhado também. E como havia uma rejeição da população ao PT e uma rejeição aos políticos em geral, o outsider não petista estava com uma avenida para trafegar. A facada teve um peso? Provavelmente, porque criou uma empatia com o candidato sujeito a uma brutalidade dessa natureza. Essa foi uma eleição na qual o outsider criou uma vantagem, e o tema econômico não era tão relevante. Os jornalistas sempre perguntavam: ;O que você vai fazer para o país crescer?;. Mas, para grande parte da população, não era disso que se tratava. Era um processo de rejeição.
O empresariado confiou que Guedes tutelaria Bolsonaro em determinado momento. Isso mostra que Bolsonaro parece mais ;outsider; do que as próprias expectativas deles?
O que eu disse durante a eleição é: ;Quem tem a caneta é o presidente, sempre;. Então, achar que alguém tutela o presidente, que alguém manda no presidente, isso é um equívoco histórico. Em todos os sistemas. Você olha a história e vê que a burguesia alemã apoiou o Hitler, não porque achava que ele era a única maneira de evitar que a Alemanha caísse nas mãos da esquerda. De fato, a esquerda comunista foi muito presente, e achou que tutelaria Hitler, mas não tutelou. Mesmo no caso Fernando Henrique e Itamar, que eram pessoas com laços de confiança muito antigos, em que Fernando tinha uma ascendência intelectual e o respeito de Itamar, houve inúmeras decisões que, na hora H, cabia ao Itamar, e ponto final. Se achou que Lula poderia tutelar Dilma?
Ele também achou que tutelaria a Dilma, mas isso não existe. Há inúmeras histórias do Lula dizendo para a Dilma não fazer algo, mas ela fazia. Ela foi eleita, tinha a caneta. Isso vale para o mundo inteiro.