postado em 29/06/2019 04:14
Responsável pela distribuição de renda e por tirar milhões de brasileiros da pobreza, o Programa Bolsa Família encontra limitações ao atingir as fronteiras das terras indígenas do país. Sem dispositivos específicos para atender a realidade desses povos, o benefício se subverte ao cruzar a linha invisível. Se transforma em desmobilizador de comunidades ou até em um veículo de endividamento. Existem casos em que comerciantes ficam com os cartões de beneficiados e mandam, como contrapartida, um valor abaixo do transferido pelo governo em produtos, além de cobrar uma taxa para o próximo mês. O sistema é chamado de ;aviamento;.As subversões do programa afetam diretamente as condições de vida dos grupos tradicionais. Em 2016, segundo dados do extinto Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), do total de famílias cadastradas no programa, 0,4% pertenciam a esses povos. No mesmo ano, segundo levantamento publicado pelo Instituto Socioambiental (Isa), 48% das comunidades do Rio Negro recebiam o benefício, que transferiu R$ 21.614.775 para São Gabriel da Cachoeira.
Na Cabeça do Cachorro, integrantes de comunidades chegam a esperar até três meses para ir à cidade sacar o benefício, por conta das longas viagens de barco, que podem durar 10 dias ; ida e volta ; e custar até R$ 600. Os hupd;;h, que já foram considerados povos afastados, se mudaram para o núcleo urbano a fim de receber o benefício. O movimento aumenta a vulnerabilidade social de indígenas. Sem trabalho ou apoio, há o risco de dependência de álcool e drogas e também de suicídio. (LC)
PARA SABER MAIS
Endividamento sistemático
No sentido literal, aviamento é a capacidade de um estabelecimento de produzir lucro. Na Amazônia, porém, é uma forma antiga de endividamento. O indígena, chamado de freguês, presta um serviço e recebe em escambo. Na relação, o produto oferecido é repassado a um preço abaixo do mercado, enquanto ele leva ferramentas e alimento a um preço bem acima do operado. O beneficiado, chamado de patrão, define o preço das mercadorias. É comum que ele também tenha um patrão, em uma hierarquia comercial de troca e endividamento, como explica o antropólogo e doutor em memória social do Museu Paraense Emílio Goeldi, Márcio Meira.
Segundo ele, um dos produtos que se tornou alvo dos patrões é o Bolsa Família. ;O que eu argumento é que a relação do aviamento não é estritamente econômica. É tão antiga que forjou um modelo de relação sociocultural, pautando relações econômicas. Pode ser com a extração de cipó, o garimpo na década de 1990 ou Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada;, detalha.
;O próprio MDS chegou a fazer um levantamento sobre o impacto do Bolsa Família na região. Eu fiz pesquisa de campo e comprovei. Nesses casos, o patrão fica na cidade com os cartões das famílias, que são fregueses, o que é ilegal. O aviamento persiste. Na época da borracha, o grande patrão ficava em Liverpool, na Inglaterra. O segundo, em Manaus: era o português Joaquim Gonçalves de Araújo, que tinha vários outros abaixo. É uma questão cultural. Então, como superar isso? Existem tentativas, mas não uma saída;, reflete o estudioso.