São Gabriel da Cachoeira (AM) ; Distante 2,7 mil quilômetros da capital federal em linha reta e acessível somente por barco ou avião, São Gabriel da Cachoeira (AM) é um caldeirão de forças políticas em disputa fervendo a fogo brando. De um lado, grupos formados por lideranças de diversas etnias defendem o direito às terras indígenas e o uso tradicional desses espaços. De outro, cooperativas desses mesmos povos rejeitam o modus operandi de relação com o governo, e afirmam que a demarcação de terras lhes dá direito à exploração mineral, embora não haja legislação para a atividade. A mistura borbulha há 25 anos. Mais especificamente, desde a implementação do Plano Real, decisivo para a transformação da região já nos primeiros passos.
O Correio esteve no município perdido no caminho das águas em 1994, na chegada da moeda que freou o preço do ouro do garimpo e congelou o fiado do comércio. As notas valiam mais e todo mundo guardava o dinheiro em casa. De volta à Cabeça do Cachorro ; região na fronteira com Colômbia e Venezuela e parte do município de São Gabriel ;, a bordo do Amazônia, um turbo-hélice da Força Aérea Brasileira, duas décadas e meia depois, a reportagem encontrou uma cidade diferente, com duas agências bancárias ; uma do Banco do Brasil e outra do Bradesco ; e uma lotérica da Caixa. Agora, o real vale menos, a lista de devedores deu lugar à compra parcelada e o garimpo é atividade escusa, com pouca influência.
A maioria das transações é feita em dinheiro. Principalmente no fim do mês, quando falta papel moeda nos bancos e muitos comerciantes escondem as maquininhas sob a desculpa de ;problemas técnicos; para obrigar a população a gastar o que guardou debaixo do colchão. Os valores que circulam na região vêm dos salários do Exército, que incorporou vários indígenas; do funcionalismo público, composto pela prefeitura, órgãos estaduais e federais; e do Programa Bolsa Família, que atende parte considerável das comunidades do Rio Negro. No núcleo urbano, muitos moradores apostam no comércio para gerar renda.
Os produtos do comércio são mais caros, porque só chegam de barco, e o frete pesa. Quando o rio está baixo, é preciso trocar de embarcação no trajeto e o custo aumenta. O real perdeu poder de compra, mas o frete se manteve estável. Os proprietários de barcos sabem que os serviços dependem de uma população de baixo poder aquisitivo e um aumento nos valores poderia paralisar a economia. Há, ainda, uma sensação generalizada de estagnação no desenvolvimento, que começa a incomodar os moradores.
Ismael Oliveira, 65, Baré, e Maria Pedrina Costa, 60, são de Iauaretê, na fronteira com a Colômbia. Ismael, que carrega cargas em embarcações, está prestes a se aposentar, e mal fala português. Arranha um espanhol misturado com o dialeto da comunidade. O casal conversa em tukano e a mulher traduz as falas do marido. ;Conseguimos um terreno em São Gabriel da Cachoeira, mas não temos dinheiro para terminar de construir a casa;, conta. Eles viajam para sacar o salário de Ismael e o Benefício de Prestação Continuada de Maria, além de comprar alimento.
O caldeirão amazônico
As várias etnias do Rio Negro representam cerca de 76% da população local. Por isso mesmo, diversos problemas políticos do município estão ligados às causas indígenas. Difícil dizer quando o caldo entornará, mas a goma dá sinais de fervura. O discurso base das lideranças tradicionais e das cooperativistas é parecido ; e não só porque é proferido em nheengatú, a língua comum a todos. Todos querem o desenvolvimento dos povos e da localidade como um todo. Muda, no entanto, a maneira de promoção desse desenvolvimento: o modelo vigente, focado na manutenção da cultura dessas comunidades, sabidamente mais lento; e o extrativista, que prioriza a lógica capitalista predatória, supostamente mais rápido.
O cenário é resultado das transformações e sucessivas crises enfrentadas pelo país. O Bolsa Família, por exemplo, fundamental para a população mais pobre, não tem o mesmo efeito e ainda pode precarizar a situação das diversas etnias às margens do rio, se não vier acompanhado de políticas públicas para garantir os diversos modos de vida desses povos. Políticas essas que se tornaram impraticáveis desde os cortes do último governo Dilma. A crise do modelo político brasileiro que, em âmbito nacional, ajudou a eleger Jair Bolsonaro, se repete no microcosmo, com a disputa por protagonismo, sendo os cooperativistas aderentes ao governo federal.
Nem todas as mudanças foram negativas. A maioria dos jovens indígenas faz algum curso superior e não pensa em parar antes da especialização. Caso da bem articulada universitária Luziane Aires Miranda, 27 anos, da etnia Tariana. Ela lembra do poder de compra da moeda na primeira infância. ;Quando eu era criança, tudo era mais barato. Meu pai ganhava R$ 300 e fazíamos compras consideráveis. Agora, ele ganha em torno de R$ 2 mil e mal conseguimos nos manter;, relata.
A família tem conta em banco desde 2002, e a estudante está concluindo biologia pelo Instituto Federal do Amazonas. Além do pai, que pilota embarcação, o irmão de Luziane, Renival, 22, praça do Exército, ajuda com o soldo. A mãe, Luzia, é dona de casa. De qualquer forma, a região continua a atrair pessoas de diversas partes do país, que imigram em busca de oportunidades. Só o tempo dirá se desse caldeirão sairá mais uma refeição indigesta, a somar-se a tantas outras em 350 anos de história do município, ou resultará em um saboroso tacacá, com tudo que o prato tem direito.
;Meu pai ganhava R$ 300 e fazíamos compras consideráveis. Agora, ele ganha em torno de R$ 2 mil e mal conseguimos nos manter;
Luziane Aires Miranda, universitária