Economia

25 anos após Plano Real, cidades do sertão ainda sofrem com a pobreza

Um quarto de século não foi o suficiente para a moeda resolver os problemas de duas cidades piauienses visitadas pelo Correio quando o plano foi lançado. Na sequência da série sobre o real, conheça a realidade de São Braz do Piauí e São Raimundo Nonato, que contam com celular, mas sofrem sem serviços básicos

Simone Kafruni - Enviada Especial
postado em 30/06/2019 08:00
Marilene usa a moto para pegar água em um açude duas vezes por dia: o dinheiro é obtido com a Bolsa Família e a pequena roça
São Braz do Piauí ; Na chegada à cidade que já ostentou o título de mais pobre do Brasil, em 1994, no lançamento do Plano Real, a instalação de uma antena de internet parece prenunciar que, finalmente, o futuro encontrou São Braz do Piauí. O primeiro pequeno provedor do município promete fornecer conexão com velocidade de 1 gigabyte (GB) para a população de toda a região ainda em julho, mês do aniversário de 25 anos da moeda brasileira. Uma volta pelos povoados locais, no entanto, revela que o atraso nunca abandonou a cidade encravada no sertão nordestino e no mapa de extrema pobreza do país: ainda falta água para os moradores.

Marilene Alves da Costa Lima, 46, precisa pegar água no açude duas vezes por dia. Vai de manhã cedo e depois, no fim da tarde, sempre de moto, o transporte mais comum ao sul do Piauí. Em uma propriedade na localidade de Pitombas, na divisa de São Braz com São Raimundo Nonato, a família planta mandioca, feijão, milho. ;O problema do nosso dinheiro é que não vale nada quando a gente vai vender a produção da roça, mas quando vai comprar no mercado é tudo muito caro. Estamos num período que não dá feijão. Faz 10 anos que não rende e, quando a gente vai comprar no mercado, o quilo custa R$ 7;, diz.

A família de seis pessoas, entre elas, três netos que Marilene cria, sobrevive com o Bolsa Família de R$ 140 por mês. ;É o que entra. Por isso, a gente tem que se virar com o que planta;, conta. A água que Marilene busca todos os dias é para os animais. ;Não posso deixar as cabras morrerem de sede porque a gente precisa do leite;, destaca. Para a família beber, quando acaba a água da cisterna, Marilene precisa pagar R$ 50 para o que chama de ;pipinha;. A filha foi morar em Brasília e trabalha como doméstica para mandar dinheiro aos dois filhos criados pela avó. ;Se continuar sem água, eu vou ter que tirar eles da escola. A gente vai ter que escolher entre ficar aqui sem água ou ir para a Serra-Queixo. Lá tem água, mas não tem colégio;, afirma.

Sem posto dos Correios, fechado há anos, São Braz não tem circulação de dinheiro, reclama Maria das Mercedes Cardoso, 53. Em 2004, nos 10 anos do real, a família tocava um mercadinho na localidade de Tanque Velho. Em 2014, o comércio começava a falir e o marido, Alaor Soares dos Santos, hoje com 55 anos, estava de malas prontas para São Paulo, trabalhar como pedreiro, e Mercedes chorava pela partida do companheiro. Hoje, ela já está acostumada a ser uma ;viúva de marido vivo;, como são chamadas as esposas dos homens que deixam São Braz todos os anos para trabalhar na construção civil nas grandes metrópoles do país. ;Ele está em São Paulo, é de lá que vem nosso dinheiro;, conta.

Alternativa

O comércio da família fechou. ;As pessoas vão até São Raimundo Nonato para retirar o dinheiro e já compram por lá. Os aposentados também tiram o benefício lá;, conta Mercedes. Quase não existem máquinas de cartão no comércio de São Braz, que tem apenas três lojas com o equipamento. ;Eu vendia para 30 dias. Era o cartão de crédito do pessoal, mas ficou cada vez mais difícil manter a loja aberta;, lamenta.

Alaor e Mercedes têm duas filhas: Juliana, 29, e Nicole, 25, filha do real. A caçula é casada com Francisco Cândido de Carvalho Neto, 44, e tem dois filhos, Wendell, 8, e Wyke Ayla, 6. A oficina de moto de Neto dá algum dinheiro para ajudar nas contas da família. ;Todos os dias tem algum tipo de conserto para fazer. Tem mês que vendo mais de 50 câmaras, fora os serviços extras. A cidade também tem muita moto de leilão, como sucata, aí tem serviço para colocar ela para andar;, diz.

Além de ser o principal meio de transporte no município, a moto representa também um dos maiores perigos para os moradores. Muitos amigos perderam a vida por causa da máquina. O irmão de Mercedes foi um deles. João Braz Cardoso morreu há 8 anos, atropelado por um ônibus, porque a estrada foi duplicada, mas as pontes ficaram apenas com uma mão. ;A morte dele serviu para população pressionar para construírem as pontes com duas mãos;, lembra Mercedes.

Enquanto a matriarca da família ainda precisa correr ao açude para buscar água em um balde, que transporta na cabeça, a filha e a neta vivem com o celular na mão. ;Eu tento ensinar para a mãe usar o banco por aqui, mas ela ainda prefere ir até São Raimundo Nonato;, diz Nicole. Como alternativa, ela customiza chinelos para vender, mas ainda não consegue renda com o produto. ;O pessoal não dá muito valor para o artesanato. Não é forte ainda;, reclama.

Açude

Não fosse pela falta de água, que obriga Mercedes a recorrer ao açude para pegar água salobra, a família vive bem. ;Aqui, a gente vive até sem dinheiro. A casa é da família e o custo que temos é com energia;, afirmam. A conta varia entre R$ 110 e R$ 150 por mês. ;Mas não dá para dizer que melhorou alguma coisa. Para mim, está tudo igual. Ainda não temos água;, dispara Mercedes. A família capta chuva na cisterna, que eles chamam de caldeirão, mas quando falta é preciso recorrer ao carro-pipa. ;Era para ter uma adutora funcionando. Prometeram para este ano, mas nada ainda.;

Ex-pipeiro, como são chamados os operadores de carros-pipa, Raimundo José da Silva, 70, vendeu o caminhão em 2016. ;Servia principalmente o interior, mas alguém disse que São Braz tinha água encanada e o município foi cortado do programa federal;, conta. ;Nem na sede da cidade tem água encanada, como é que os povoados vão ter?;, questiona. O caminhão que tinha comprado por R$ 45 mil, Raimundo vendeu por R$ 31 mil. ;Ainda bem que o prejuízo não foi tão grande. Tem muito pipeiro que não acha comprador e está com o veículo parado;, diz. Agora, carro-pipa só particular, que sai por R$ 400 a R$ 480, com uma carga de 8 mil litros. Em 2004, custava R$ 100, e, em 2014, R$ 200. ;É triste dizer isso, mas 25 anos depois do lançamento do real, a situação da água em São Braz piorou;, lamenta Raimundo.

Segundo ele, existe um poço com vazão de 252 mil litros por hora e 606 metros de profundidade, de água mineral. ;Os canos estão aí. Prometem trazer a água, mas não trazem. Serviu só para acabar com o programa de carro-pipa;, assinala. A obra começou em 2014 com promessa para entregar em 2019. ;Os carros poderiam produzir, dando lucro para alguém, mas não: estão parados;, afirma. ;Se mexerem, vão descobrir verba desviada, má aplicação do dinheiro público;, denuncia. ;Em 25 anos, a dificuldade é para desenvolver a cidade. Como é que desenvolve sem água?;, indaga.

São Raimundo Nonato (PI)

Sidnaura lembra que a família comemorou o Plano Real. Agora, com a venda de carne, ela aponta problemas para se manter
Os anos passam, a tecnologia avança, mas o sonho da população de São Raimundo Nonato ainda é o mais básico: água. A obra da Adutora de Engate Rápido, inaugurada há um ano, está mais para pesadelo. Com 26 quilômetros de extensão, a construção deveria levar água dos poços da Serra Branca ao sistema adutor do Garrincho, possibilitando o abastecimento de nove municípios da região. Apesar do custo de R$ 15,4 milhões, ainda não funciona. O Aeroporto Internacional Serra da Capivara, que gerou muita expectativa em 2014 como porta de entrada para impulsionar o turismo, é outro elefante branco. Consumiu R$ 20 milhões, está pronto, mas só recebe aviões particulares.

Apesar disso, a tecnologia chegou com tudo ao município. A internet avançou graças ao empreendedorismo de Antônio Castro do Rosário Júnior, 38 anos, que, em 1994, quando o Plano Real foi lançado, era um menino de 13 anos, mas já cursava informática. ;Aprendi muito ao longo dos anos e nos empregos que tive. Em 2005, decidi parar de trabalhar e focar na manutenção de computadores;, conta. Em 2008, percebeu que o acesso ao crédito era fácil e que havia demanda por equipamentos. Abriu a Infoxente, loja de informática, cujo slogan era ;Tecnologia arretada;.

;Vendi muito bem no início, mas depois todas as lojas passaram a oferecer computadores e perdi competitividade. Em 2012, montei um laboratório e decidi focar em redes, área que estava crescendo. Fechei a loja e trouxe os seis funcionários para a Oxente Net;, conta. A empresa, hoje, é a maior provedora de internet da região. Começou com 120 clientes em 2014 e atualmente atende 5 mil, com 50 funcionários, num raio de 100 quilômetros, competindo com as grandes operadoras. ;Hoje, 80% dos dados da região passam pela Oxente Net;, destaca. O negócio continua em expansão e a empresa investe em fibra ótica. A projeção é dobrar de tamanho em dois anos. ;A ideia é fornecer mais dados e baratear o preço.;

Enquanto a tecnologia avança, o comércio tradicional se mantém na cidade, que é polo para 13 municípios. Vendedora no mercado de carnes de São Raimundo, Sidnaura Araújo, 41, diz que o quilo da carne de bode custava R$ 4,50 em 2004. Em 2014, passou para R$ 11, mas, nos últimos cinco anos, não valorizou muito. ;Hoje, eu vendo a R$ 14, mas, se o mercado está ruim, faço a R$ 13. O pessoal está chorando mais;, conta. Ela lembra que a vida melhorou com o Plano Real. A família dela adquiriu carro, moto e equipou a casa com eletrodomésticos modernos. Agora, ela conta com um aliado: o aplicativo do celular. ;As vendas melhoraram porque eu fecho negócio por WhatsApp. Vendo até para Teresina. É só encomendar, que eu entrego;, conta.

Tirando a pele

Em 1994, o pernambucano Cosme de Souza Cazé, conhecido como Galego das Peles, dono de uma empresa para comprar pele de animais dos produtores locais e revender para curtumes, era um dos mais entusiasmados com a chegada do real. Chegou a faturar R$ 15 mil por mês. Mas a animação caiu com o faturamento. Em 2004, uma década depois da implantação da moeda, o caixa registrava R$ 8 mil mensais. Em 2014, aos 70 anos, Galego contou que mal fazia R$ 3 mil. Quando a moeda completa 25 anos, ele está aposentado e nem passa mais pela loja no centro da cidade.

Um dos maiores produtores de animais da região, o empresário Absolon Rubem de Araújo, 69, tem a loja agropecuária Casa do Campo na cidade e uma propriedade rural na localidade de Barreira do Doca, a cerca de 22km do centro de São Raimundo Nonato, onde, em 2014, criava 400 cabeças. ;Continuo produzindo, agora com foco em melhoramento genético. Mas reduzi o rebanho. Estou com 200 cabeças;, conta. Há cinco anos, estava entusiasmado com o crescimento da cidade. Hoje, Absolon lamenta que o dinheiro esteja curto. ;Tem muita loja fechando. A gente vai levando porque é insistente e vai se adaptando;, ressalta.

Empresária em São Raimundo Nonato, Socorro Macedo, 64, lembra que o real representou estabilidade. Nos últimos cinco anos, no entanto, Socorro nota perda no valor de compra da moeda. ;Os combustíveis subiram muito, daí tudo fica mais caro por causa do frete. A energia também encareceu. E eu não consigo repassar o aumento de custo para os clientes;, ressalta Socorro, que investiu em tecnologia para se manter no mercado.

Olho no turista

Lucas de Macedo Negreiros, 44, chef e dono de uma pousada, começou a carreira trabalhando com o pai, que percebeu que os representantes comerciais tinham poucas opções para se hospedarem na cidade e viu nisso uma oportunidade. Montaram a Pousada Zabelê, que sobreviveu a muitos planos econômicos do país. ;Com o Parque da Serra da Capivara e a estabilidade do real, tentamos difundir o turismo na cidade, criamos comitês. O Sebrae foi um parceiro;, conta Lucas. Com o fim das obras do aeroporto, que, em 2014, estavam quase concluídas, houve uma expectativa positiva. No entanto, não se concretizou. ;O governo queria que os voos partissem de Teresina, quando nosso movimento é todo por Petrolina. A estratégia foi errada;, avalia.

Os últimos anos não têm sido fácil. ;A energia e o gás subiram muito e não consigo repassar para a diária dos hóspedes. Além disso, temos o eterno problema da água;, diz. A logística para chegar a São Raimundo Nonato também não ajuda, acrescenta Lucas. ;A chegada a Petrolina é na madrugada. O turista tem que passar uma noite lá, para, só no dia seguinte, pegar a estrada, que ainda não está totalmente pronta. É preciso alugar um carro. O destino se torna caro;, lamenta.

Por conta disso, o movimento na pousada ainda é 80% comercial. ;A tecnologia é nossa aliada. Mas precisamos mesmo é de infraestrutura;, afirma.

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação