São Braz do Piauí ; Na chegada à cidade que já ostentou o título de mais pobre do Brasil, em 1994, no lançamento do Plano Real, a instalação de uma antena de internet parece prenunciar que, finalmente, o futuro encontrou São Braz do Piauí. O primeiro pequeno provedor do município promete fornecer conexão com velocidade de 1 gigabyte (GB) para a população de toda a região ainda em julho, mês do aniversário de 25 anos da moeda brasileira. Uma volta pelos povoados locais, no entanto, revela que o atraso nunca abandonou a cidade encravada no sertão nordestino e no mapa de extrema pobreza do país: ainda falta água para os moradores.
Marilene Alves da Costa Lima, 46, precisa pegar água no açude duas vezes por dia. Vai de manhã cedo e depois, no fim da tarde, sempre de moto, o transporte mais comum ao sul do Piauí. Em uma propriedade na localidade de Pitombas, na divisa de São Braz com São Raimundo Nonato, a família planta mandioca, feijão, milho. ;O problema do nosso dinheiro é que não vale nada quando a gente vai vender a produção da roça, mas quando vai comprar no mercado é tudo muito caro. Estamos num período que não dá feijão. Faz 10 anos que não rende e, quando a gente vai comprar no mercado, o quilo custa R$ 7;, diz.
A família de seis pessoas, entre elas, três netos que Marilene cria, sobrevive com o Bolsa Família de R$ 140 por mês. ;É o que entra. Por isso, a gente tem que se virar com o que planta;, conta. A água que Marilene busca todos os dias é para os animais. ;Não posso deixar as cabras morrerem de sede porque a gente precisa do leite;, destaca. Para a família beber, quando acaba a água da cisterna, Marilene precisa pagar R$ 50 para o que chama de ;pipinha;. A filha foi morar em Brasília e trabalha como doméstica para mandar dinheiro aos dois filhos criados pela avó. ;Se continuar sem água, eu vou ter que tirar eles da escola. A gente vai ter que escolher entre ficar aqui sem água ou ir para a Serra-Queixo. Lá tem água, mas não tem colégio;, afirma.
Sem posto dos Correios, fechado há anos, São Braz não tem circulação de dinheiro, reclama Maria das Mercedes Cardoso, 53. Em 2004, nos 10 anos do real, a família tocava um mercadinho na localidade de Tanque Velho. Em 2014, o comércio começava a falir e o marido, Alaor Soares dos Santos, hoje com 55 anos, estava de malas prontas para São Paulo, trabalhar como pedreiro, e Mercedes chorava pela partida do companheiro. Hoje, ela já está acostumada a ser uma ;viúva de marido vivo;, como são chamadas as esposas dos homens que deixam São Braz todos os anos para trabalhar na construção civil nas grandes metrópoles do país. ;Ele está em São Paulo, é de lá que vem nosso dinheiro;, conta.
Alternativa
O comércio da família fechou. ;As pessoas vão até São Raimundo Nonato para retirar o dinheiro e já compram por lá. Os aposentados também tiram o benefício lá;, conta Mercedes. Quase não existem máquinas de cartão no comércio de São Braz, que tem apenas três lojas com o equipamento. ;Eu vendia para 30 dias. Era o cartão de crédito do pessoal, mas ficou cada vez mais difícil manter a loja aberta;, lamenta.
Alaor e Mercedes têm duas filhas: Juliana, 29, e Nicole, 25, filha do real. A caçula é casada com Francisco Cândido de Carvalho Neto, 44, e tem dois filhos, Wendell, 8, e Wyke Ayla, 6. A oficina de moto de Neto dá algum dinheiro para ajudar nas contas da família. ;Todos os dias tem algum tipo de conserto para fazer. Tem mês que vendo mais de 50 câmaras, fora os serviços extras. A cidade também tem muita moto de leilão, como sucata, aí tem serviço para colocar ela para andar;, diz.
Além de ser o principal meio de transporte no município, a moto representa também um dos maiores perigos para os moradores. Muitos amigos perderam a vida por causa da máquina. O irmão de Mercedes foi um deles. João Braz Cardoso morreu há 8 anos, atropelado por um ônibus, porque a estrada foi duplicada, mas as pontes ficaram apenas com uma mão. ;A morte dele serviu para população pressionar para construírem as pontes com duas mãos;, lembra Mercedes.
Enquanto a matriarca da família ainda precisa correr ao açude para buscar água em um balde, que transporta na cabeça, a filha e a neta vivem com o celular na mão. ;Eu tento ensinar para a mãe usar o banco por aqui, mas ela ainda prefere ir até São Raimundo Nonato;, diz Nicole. Como alternativa, ela customiza chinelos para vender, mas ainda não consegue renda com o produto. ;O pessoal não dá muito valor para o artesanato. Não é forte ainda;, reclama.
Açude
Não fosse pela falta de água, que obriga Mercedes a recorrer ao açude para pegar água salobra, a família vive bem. ;Aqui, a gente vive até sem dinheiro. A casa é da família e o custo que temos é com energia;, afirmam. A conta varia entre R$ 110 e R$ 150 por mês. ;Mas não dá para dizer que melhorou alguma coisa. Para mim, está tudo igual. Ainda não temos água;, dispara Mercedes. A família capta chuva na cisterna, que eles chamam de caldeirão, mas quando falta é preciso recorrer ao carro-pipa. ;Era para ter uma adutora funcionando. Prometeram para este ano, mas nada ainda.;
Ex-pipeiro, como são chamados os operadores de carros-pipa, Raimundo José da Silva, 70, vendeu o caminhão em 2016. ;Servia principalmente o interior, mas alguém disse que São Braz tinha água encanada e o município foi cortado do programa federal;, conta. ;Nem na sede da cidade tem água encanada, como é que os povoados vão ter?;, questiona. O caminhão que tinha comprado por R$ 45 mil, Raimundo vendeu por R$ 31 mil. ;Ainda bem que o prejuízo não foi tão grande. Tem muito pipeiro que não acha comprador e está com o veículo parado;, diz. Agora, carro-pipa só particular, que sai por R$ 400 a R$ 480, com uma carga de 8 mil litros. Em 2004, custava R$ 100, e, em 2014, R$ 200. ;É triste dizer isso, mas 25 anos depois do lançamento do real, a situação da água em São Braz piorou;, lamenta Raimundo.
Segundo ele, existe um poço com vazão de 252 mil litros por hora e 606 metros de profundidade, de água mineral. ;Os canos estão aí. Prometem trazer a água, mas não trazem. Serviu só para acabar com o programa de carro-pipa;, assinala. A obra começou em 2014 com promessa para entregar em 2019. ;Os carros poderiam produzir, dando lucro para alguém, mas não: estão parados;, afirma. ;Se mexerem, vão descobrir verba desviada, má aplicação do dinheiro público;, denuncia. ;Em 25 anos, a dificuldade é para desenvolver a cidade. Como é que desenvolve sem água?;, indaga.