postado em 14/07/2019 04:26
Coesão inesperada
A síntese da bem-sucedida votação da reforma da Previdência, a mais importante para os quatro anos do governo e da atual legislatura, pôs em evidência três eventos determinantes para o futuro do país.
É importante entender o contexto político que circunda este governo atípico tanto para calibrar as expectativas sobre o que dá para fazer no Congresso, quanto para não se adiar a retomada do crescimento, que não engrena. E mais por ranço ideológico que por razões objetivas.
A economia está estagnada, o viés é de recessão, a insuficiência de demanda é notória, mas o Banco Central reluta em afrouxar o controle monetário, ainda que não haja à vista nenhuma ameaça de descontrole fiscal e inflacionário. Ameaças sérias são o colapso das finanças dos estados e da infraestrutura pública, além da precarização social.
Ajuste fiscal sem dinamismo econômico é certeza de crise. Aos fatos.
1;, e mais relevante das tendências em curso, é que há, sim, maioria parlamentar na Câmara para endereçar as reformas modernizantes que já tardam. Ela é a mesma que controla a Câmara e o Senado desde o fim do período autoritário, dispersa entre partidos de centro-direita. Hoje, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, do Democratas do Rio, é a sua principal liderança, conduzindo o plenário com eficiência, valendo-se também de sua interlocução fácil com os partidos de esquerda.
2;, embora tenha sido deputado por 28 anos seguidos, Jair Bolsonaro não formou em nenhum tempo uma rede no Parlamento e o PSL ao qual se uniu para disputar a Presidência é um partido de facções. A policial é a maior razão pela qual a reforma da Previdência foi desfigurada a fim de preservar o regime especial do aparato de Polícia Federal (mas não das polícias militares e civis, devido à exclusão de estados e municípios da reforma). Bolsonaro foi peça ativa nesse movimento.
3;, sem base política, com o PSL fracionado entre os interesses das corporações policiais, de evangélicos, radicais de extrema-direita e adesistas de última hora, o que o governo tem conseguido na Câmara se deve ao empenho e à habilidade de Maia em construir consensos.
Projetos em construção
Esses três eventos estão consolidados e terão consequências. Daqui para frente, a conjuntura econômica e política será influenciada pelo grau de acerto não bem do Congresso, que parece entender o cenário e as suas oportunidades, mas do governo e seus projetos alegóricos.
Os desdobramentos serão função dos passos erráticos de Bolsonaro, de sua trupe de ativistas nas redes sociais e da capacidade operacional, ou seja, de idealizar, negociar e implantar, do ministro Paulo Guedes (no que se mostra devedor). Ministro não vai ao parlamento para bater boca com parlamentar, como ele fez nas audiências da previdência.
Foi assim que o presidente da Câmara, cuja liderança já era elevada entre os deputados e se reelegeu com apoio do PSL mas sem pedir para ser apoiado por Bolsonaro, acabou assumindo o papel de coordenador da reforma da Previdência. E o fez por demanda dos partidos, sobretudo depois de bolsonaristas irem às ruas enxovalhar o Congresso e o STF.
Sem vez para extremismos
Desse choque de concepções divergentes, destaca-se outra evidência ; a de que dificilmente um programa liberal extremado terá vez se não for gradativo e pontual, embora escalável. Isso é inexorável.
Com 48% da renda total das famílias brasileiras saindo de algum cofre público, sendo a única renda no caso dos mais pobres num país em que 77% dos domicílios tem rendimento regular de cinco salários mínimos no máximo (84% no Norte e 86% no Nordeste), não se muda o regime fiscal, democraticamente, na canetada. Ou no grito.
Se houvesse crescimento econômico ao redor de 2% ao ano, considerado adequado para sustar o desemprego e o subemprego e começar a revertê-lo, tudo seria mais fácil. Mas nem os ministros e Bolsonaro tocam no assunto nem os projetos em discussão e cogitados, como o tributário, têm condições de, por si, movimentar a economia no curto prazo.
Chuvarada em terra seca
Vai melhorar? Algo vai, já que a economia está no bagaço e qualquer estímulo será como chuvarada em terra seca. Também não há risco cambial no horizonte, a causa mortis da maioria das economias.
O ânimo mais imediato deverá vir do Banco Central, com três cortes de 0,5 ponto de percentagem da taxa Selic até fim de ano, como está precificado pelo mercado. Hoje ela é de 6,5%. Mas precisa de mais.
O presidente da Câmara articula, em conjunto com o Senado, projetos menos polêmicos que grandes reformas constitucionais para dar algum gás à economia e desanuviar o clima social carregado. A percepção entre os partidos à sua volta é que a dispersão perdeu utilidade, até porque o pagamento de emendas orçamentárias passará a ser mandatória.
Vai ficando claro que as eleições, pela primeira vez desde 1994, dependerão de condições em que o governo não necessariamente será protagonista. E que as reformas essenciais para se romper a couraça da burocracia estatal tem de ter viés social. São alentos otimistas.
Redenção pela tecnologia
O placar das votações da previdência na Câmara indica os limites da política. A reforma foi aprovada por 379 votos contra 131 (com quórum altíssimo de 510 entre 513 deputados). Foi indicativo de sinal verde para as transformações. Mas dentro de certos limites.
Policiais federais e rodoviários mantiveram um regime mais ameno que o aprovado para a imensa maioria de brasileiros por 467 votos a favor contra apenas 15. E os professores, por 465 a 25. Esse é o país que a atual configuração política não vai mudar com propostas de ajuste e, sim, com reformas que somente a tecnologia permite viabilizar.
Guedes desprezou esse conselho. Miremos os exemplos da Índia, Coreia do Sul, Estônia, China, países com digitalização em massa dos dados da população e uso intensivo dos recursos da tecnologia. A economia e a gestão terão de se adaptar a ela, não o contrário.