postado em 22/09/2019 04:05
Crítico das propostas da reforma tributária que tramita no Congresso, que propõem substituir vários impostos por um único, do tipo Imposto sobre Valor Agregado (IVA), o ex-secretário da Receita Federal Everardo Maciel, hoje consultor, afirma que, no Brasil, o IVA fere um princípio constitucional que impede emendar o pacto federativo para garantir autonomia a estados e municípios. Para ele, a proposta da Câmara ;tem a única preocupação de redistribuir carga, para desonerar bancos de pagarem R$ 30 bilhões e tributar pequenos contribuintes, ao aumentar a carga tributária de uma incorporação do Minha Casa Minha Vida em 3.717%;, por exemplo.
Na opinião de Everardo, não é preciso acabar com o modelo de imposto sobre consumo adotado no Brasil, o ICMS, mas reduzir o número de alíquotas, e voltar a coordenar a sua operação. O principal problema, afirma, é o excesso de litígios, que somam R$ 3,3 trilhões, metade do PIB, situação que pode ser mitigada pela integração administrativa e jurídica. Para isso, ele defende aprimoramentos legais, e não uma reforma constitucional.
Ele defende a manutenção de incentivos fiscais, de forma regulamentada, para enfrentar o problema das desigualdades regionais. Sobre desonerar a folha de pagamento, como quer o ministro da Economia, Paulo Guedes, concorda, pois o imposto, ;está aumentando a informalidade;. Defende a CPMF, mas acha que o país não está pronto para a modalidade. O ex-secretário se inspira em soluções europeias que começam a tributar a informação, como a com turnover tax e como estuda o Reino Unido, com o GAFAM, em referência ao Google, Amazon, Facebook e Microsoft. ;Esse é novo mundo;, disse, com entusiasmo, em entrevista ao Correio na tarde da última sexta-feira:
O senhor já criticou as reformas que
tramitam no Congresso. Qual é a sua reforma?
tramitam no Congresso. Qual é a sua reforma?
Não tenho uma reforma, mas uma maneira diferente de enxergar. Acho que temos que procurar soluções para os problemas e não buscar qual é o problema que se enquadra na solução. Reforma Tributária é um processo permanente de enfrentamento e resolução de problemas tributários. Não fórmula mágica, uma solução universal, nem o remédio para todos os males. É muito fácil chegar e fazer uma propaganda de um enlatado tributário: o mundo inteiro adota isso. Mas eu estou falando do Brasil, não de Cingapura, Malásia ou África do Sul. Para o Brasil, qual é o problema? São muitos. Todo sistema tributário é uma fábrica de problemas, porque os sistemas são construídos por decorrer de conflitos, não se faz por download. Se põe uma questão, que envolve conflitos de interesse e de razão, e a resolução se opera em casa política. O IVA é adotado por grande parte dos países. O Brasil tem um modelo de IVA (o ICMS), que é bem diferente. Aí se diz assim: vamos adotar o modelo dos países que prosperaram. Tem países que não prosperaram e têm IVA. Posso dar uma lista aqui de uns 50. E vou dar um contraexemplo de um país que é a maior potência do mundo, que são os Estados Unidos, e não têm IVA.
Para implementar o IVA, tem que
mexer na Constituição, no pacto federativo...
mexer na Constituição, no pacto federativo...
O pacto federativo não é suscetível à mudança. Eu peço licença para ler o artigo 60, parágrafo quarto, da Constituição: Não será objeto de deliberação proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa de estado. Não é que muda, é que ameaça. Não é que abole, é que tende a abolir. Não é possível haver emenda constitucional para tratar disso. É isso que está sendo proposto.
Então, a proposta do IVA é inconstitucional?
Não o fato de propor o IVA, mas o IVA fere o núcleo de autonomia dos estados e municípios.
Por que o IVA não resolve os problemas tributários do Brasil?
O Brasil tem o ICMS. O IVA foi concebido na década de 20 e implementado pela primeira vez no Japão, em 1949, depois, a França fez uma tentativa, mas não foi até a operação de varejo. O Brasil foi o primeiro país do mundo que adotou até o varejo, que era o ICM e depois virou o ICMS. Cometeu um erro. Compreensível, mas um erro, que foi atribuir o ICM à competência estadual. Isso criou muitos problemas na fronteira entres os estados. Gerou problema em relação às ações interestaduais, que ficaram de difícil gestão.
Guerra fiscal?
Guerra fiscal é um fenômeno recente. Fui secretário de Fazenda nos anos 70 e 80, e isso não existia. Aconteceu por uma combinação de razões. A primeira foi a Constituição de 1988, que estabeleceu muitos parâmetros de liberdade aos estados. Antes só existia uma alíquota do ICM, agora são várias. Outra razão foi administrativa. Havia um órgão no Ministério da Fazenda, que cuidava da coordenação do ICM. Na reforma administrativa do governo Fernando Collor, no início dos anos 1990, foi extinto. A terceira razão é que a Constituição de 1988 disse que as regras de concessão de benefícios fiscais seriam estabelecidas por uma nova lei. Essa lei só foi aprovada em 2017. A Lei Complementar 160 (créditos tributários). Melhorou, mas não está completamente resolvido. Então, perdeu-se a coordenação nacional. Aí, o estado faz o que quiser, sem regra. Significa dizer que se deve extinguir o ICMS? Não. Essa é uma visão preconceituosa. O Brasil tem profundas desigualdades regionais e de renda. A única forma de enfrentar essas desigualdades é por meio da iniciativa privada. Isso significa dizer que precisa de incentivos fiscais.
Como o sistema tributário pode atacar
as desigualdades regionais?
O sistema tributário não resolve desigualdade regional, mas pode concorrer para mitigá-la. Incentivo fiscal é uma forma. Veja, por exemplo, a Zona Franca de Manaus. Tem problemas? Tem. Agora, ter problemas não significa dizer que ela deve ser extinta. O que vai ser dito aos 83 mil empregados no polo industrial de Manaus, que lá não pode mais ter incentivo fiscal? Como que, em uma circunstância como a que vivemos hoje, de discussão sobre a crise do clima, vamos dizer a essas pessoas que elas estão desempregadas? Vão devastar a Amazônia. Ou então vão para as periferias das grandes cidades formando o cordão da criminalidade. O mundo inteiro concede incentivos fiscais.
O senhor não é a favor de tributar dividendos. Qual é o
caminho para tributar mais os ricos e menos os pobres?
Só quem paga imposto é pessoa física. Pessoa jurídica só recolhe. Quem paga é o contribuinte de fato, quem recolhe é o contribuinte de direito. Como que a pessoa física é tributada? De quatro maneiras: IPTU, atividade laboral e como aplicador (sistema financeiro) ou nas empresas. Nas empresas, quem paga é o sócio, quem recolhe é a empresa. Dividendo é o que sobrou depois da tributação. Então, você recebeu livre de tributação. Eu posso tributar no dividendo, ou antes ou tributar nos dois, mas, para quê? É mais fácil aumentar a alíquota do tributo da empresa. Tributar só na empresa evita sonegação. Existe uma coisa chamada Distribuição Disfarçada de Lucros (DDL). É um forma de sonegação clássica de dificílima apuração. Você é dono de empresa e, como o dividendo, é tributado. Eu compro o meu carro em nome da empresa. Fiz uma DDL. Esse fenômeno tem no mundo todo só não tem no Brasil, onde teve um único caso de 1996 para cá.
Mas como fazer ricos pagarem mais impostos e pobres, menos?
Na verdade, no Brasil, apenas 7% da população economicamente ativa paga imposto. Temos 93% isentos, que são os pobres. Isso pelo IR. Temos o mais alto nível de isenção do mundo. A indexação foi uma das maiores fontes de renda desse país. Com a indexação, as empresas tinham direito à correção monetária no patrimônio líquido do balanço. Em outras palavras, quanto maior a empresa, em patrimônio líquido, maior a correção. Quanto maior a inflação, maior a correção. Se você combina inflação alta com patrimônio alto, ninguém paga imposto. Isso foi um dos maiores instrumentos de concentração de renda concebidos que eu já vi na história. O Brasil tinha, acabou em 1995. E simplificou profundamente a apuração de imposto. Então, esse é um projeto que tem uma única preocupação: redistribuir carga, para desonerar banco, desonerar o grande contribuinte e tributar o pequeno. Com essa (proposta) que está lá na Câmara, profissional autônomo e pessoa física têm um aumento de carga tributária de 471%; uma sociedade uniprofissional de advocacia e engenharia, de 546%; uma escola com lucro presumido, de 211%; uma incorporação do Minha Casa Minha Vida, de 3.717%. Isso tudo para livrar os bancos do pagamento de R$ 30 bilhões.
Então o senhor acha que seria mais
eficiente ir arrumando de forma gradual?
eficiente ir arrumando de forma gradual?
Em outras palavras, não jogar a criança com água suja na bacia. A questão da guerra fiscal é um problema, mas está sendo encaminhado e pode ser melhorada. Existem muitas alíquotas de ICMS, mas o contrário de muitas não é uma, são algumas. Por que tem muitas? Tem uma combinação de alíquotas marginais com redução de base de cálculo, que dá alíquotas efetivas grandes. Se eu tenho uma alíquota de 20% e faço a redução de base de cálculo de 50%, a alíquota fica 10%. Se posso combinar um com outro, dá um número grande. Como fazer? Proibir redução de base de cálculo. Isso reduz muitíssimo o número de alíquotas. E, sempre que possível, evitar mudanças constitucionais. Os problemas tributários brasileiros essenciais não estão sendo tratados. Primeiro, excessiva litigiosidade. Temos um volume de litígios no que correspondem a R$ 3,3 trilhões, metade do PIB. Resolver isso passa por mudanças no processo tributário, que hoje é disfuncional, porque o processo tributário administrativo não se integra com o Judiciário. Fazer a integração significa dizer: cuidado, se você fizer lançamento e estiver errado, paga. Hoje em dia não acontece nada, não há sucumbência administrativa (o perdedor arca com as despesas do vencedor). Funciona assim em muitos países. O segundo é resolver as grandes indeterminações conceituais. Quando tenho uma coisa que não sei com clareza, promovo uma briga. Se o Fisco tem um entendimento, o contribuinte tem outro e o Judiciário tem outro, tem uma boa fonte de litígio. Os conceitos não estão determinados. Tem que se dedicar à solução disso. Se a causa permanece, o problema não vai terminar nunca. Quase tudo é matéria de lei. Então, são mudanças legais, não constitucionais.
Como simplificar o sistema tributário brasileiro?
Todo sistema tributário é complexo. Alíquota única para mim é teoria de terraplanismo tributário. Não tem nenhum país que tenha isso no mundo. Tem um, a Nova Zelândia, que é uma ilha, é outro mundo. O sistema tributário de renda mais complexo do mundo é o dos EUA. Qual é o mais simples do mundo? O do Brasil. Tem que mudar a administração.
E um imposto único de operações financeiras,
como a CPMF, conforme propõe o Instituto Brasil 200?
Falar em CPMF não é oportuno no momento. Ela tem que ser decantada, explorada, conhecida, bem debatida, em novo desenho. Acho que não é o momento político para isso. O que se discute na Europa hoje é o imposto sobre a informação, como a França aprovou, há dois meses, o turnover tax. Está sendo discutido no Reino Unido o GAFAM, que significa Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft. A Austrália criou o google tax. Ou seja, esse é um mundo novo.
E a desoneração da folha de pagamento?
A tributação da folha de pagamentos, como contribuição patronal, foi adotada no mundo todo, mas a alíquota era baixa. No Brasil também, de 8%, mas, com o deficit da Previdência, foi obrigado a ir subindo até pegar o trabalhador autônomo, e ficou como obstáculo de contratação. Por isso, aparece o fenômeno da ;Pejotização (contrato como pessoa jurídica), que é uma alíquota absurda de 20%. A área do trabalho está mudando rapidamente no mundo todo, então, tributar folha de pagamento será tributar vento. Precisa arranjar outra forma de financiamento da Previdência.