Nelson Cilo, Jaqueline Mendes
postado em 29/10/2019 06:00
[FOTO1]São Paulo ; Assim que a contagem das urnas na Argentina cravou, na noite do domingo (27/10), a vitória dos peronistas Alberto Fernández e Cristina Kirchner sobre o atual presidente, Mauricio Macri, empresários e entidades de diversos setores da economia brasileira começaram a refazer suas contas.;No setor automobilístico, o que já era ruim pode ficar ainda pior;, afirma o executivo de uma montadora francesa, com fábricas no Brasil e na Argentina, que pediu para não ter o nome revelado. ;O que será do Mercosul, ainda não sabemos, mas, se a dupla eleita na Argentina for coerente com o discurso de campanha, e o presidente Jair Bolsonaro reagir à altura das críticas, a certeza é de que o cenário pode piorar.;
A perspectiva de deterioração das relações comerciais com o país vizinho é endossada pela associação dos fabricantes de automóveis, a Anfavea. Embora ainda não tenha um cálculo fechado, a entidade está revendo para baixo os números de exportação. Os embarques para a Argentina, de janeiro a setembro deste ano, foram de 175,5 mil unidades, uma queda de mais de 50% contra as 363 mil unidades do mesmo intervalo de 2018. Com isso, a participação da Argentina nas exportações brasileiras de automóveis despencou de 73% para 52%. O presidente da entidade, Luiz Carlos Moraes, preferiu não fazer nenhum comentário sobre o resultado das urnas, mas informou que um posicionamento deve ser apresentado durante a divulgação mensal de resultados, na próxima semana.
O clima de tensão gerado pela eleição na Argentina se justifica. A moeda local, o peso, nunca valeu tão pouco, as taxas de juros estão acima de 60% e a inflação anual passa de 54%. Conhecida por fazer um governo populista e protecionista, Cristina Kirchner promoveu, durante 2007 e 2015, políticas de restrição à importação de produtos brasileiros e estabeleceu tarifas adicionais para diversos setores. O risco, agora, é a volta das sobretaxas, não apenas no setor de veículos e peças, mas também nas atividades essenciais para os dois países, como o agronegócio. ;Embora por um período intermediário os impostos tenham sido elevados na gestão de Maurício Macri, em virtude de problemas orçamentários, depois, eles foram reduzidos consideravelmente;, diz Michaela Kühl, analista de commodities agrícolas do banco alemão Commerzbank. A Argentina é o maior exportador de farelo e óleo de soja, além de um dos maiores exportadores de milho e trigo. ;Muitos agricultores estão temerosos com o fato de o novo governo poder intervir em uma extensão muito maior na produção e declararam que, se isso acontecer, irão reter investimentos;, completa a analista.
Farpas
A tensão imediata do setor produtivo brasileiro se explica pela recente troca de farpas entre Fernández e Bolsonaro. No dia da vitória, o presidente eleito da Argentina fez o sinal de ;Lula Livre; com os dedos. Já o líder brasileiro disse que a escolha do eleitor argentino foi um erro e que o gesto com as mãos foi uma afronta à democracia brasileira. ;Se o Brasil deixar o Mercosul, o acordo comercial com a União Europeia pode fracassar;, diz Lucas Dezordi, economista-chefe da Trivella M3 Investimentos. ;Fora do bloco, o Brasil perderia a oportunidade de capitalizar com a parceria.; Outros setores, historicamente dependentes da corrente comercial com a Argentina, também receberam com apreensão o resultado das eleições no país vizinho. Para o presidente da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit), Fernando Pimentel, ;o momento é de observar, acompanhar e trabalhar para que a relação entre Brasil e Argentina cresça e se desenvolva;. A Argentina é o terceiro maior parceiro comercial do Brasil, ficando atrás apenas de China e Estados Unidos. O país é o principal destino das vendas internas da indústria têxtil e de confecção.
No setor de alumínio, a ordem é esperar para entender melhor os planos do novo presidente argentino. ;Ainda é cedo para qualquer análise sobre o impacto da eleição de Alberto Fernández para os negócios do setor. A torcida é para que o novo governo promova o crescimento sustentável do país. Será bom para todos: para a Argentina, para o Brasil e para o nosso alumínio;, diz Milton Rego, presidente executivo da Associação Brasileira do Alumínio (Abal). A Argentina é um dos principais parceiros da balança comercial do alumínio. De janeiro a setembro, o país vizinho respondeu por 12% das exportações brasileiras de alumínio. Para a Associação Brasileira das Indústrias de Calçados (Abicalçados), o viés mais protecionista do que o do liberal Maurício Macri traz novamente o fantasma de barreiras aos calçados brasileiros exportados para a Argentina. ;É natural que exista o receio. Durante boa parte do governo de Cristina Kirchner, hoje vice-presidente na chapa eleita, tivemos problemas com a liberação de licenças, com prejuízos que chegaram a mais de US$ 200 milhões;, afirma o presidente executivo da entidade, Haroldo Ferreira.
Apesar da crise na Argentina, o país segue sendo o segundo principal destino internacional do calçado brasileiro, atrás apenas dos Estados Unidos. Entre janeiro e setembro deste ano, foram exportados para lá 7 milhões de pares, que geraram US$ 77,14 milhões, quedas tanto em volume (de 25,5%) quanto em receita (de 33%) na relação com igual período de 2018.
Ideologia
O pêndulo ideológico esquerda-direita-esquerda é o que mais tem gerado tensão na relação entre as duas maiores economias da América do Sul, segundo o presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), José Augusto de Castro. ;Questões ideológicas não deveriam interferir nos negócios entre os dois países. Se o Brasil criar dificuldades, pode perder um comprador ainda importante. Não podemos abrir mão da Argentina porque a China pode ficar muito feliz com qualquer prejuízo na relação;, afirmou ele. Segundo Castro, a Argentina deve ainda adotar barreiras à importação brasileira e o setor automobilístico deve ser o mais afetado. A relação entre os dois países, de acordo com ele, é importante para favorecer negócios entre o Mercosul e a União Europeia, por exemplo. ;O melhor é deixar a poeira assentar e não fazermos comentários contra a Argentina;, afirmou Augusto de Castro.