Economia

Desigualdade, uma ferida que não se fecha

Abismo de renda que separa os mais ricos dos mais pobres volta a aumentar nos últimos cinco anos, impulsionado pela recessão de 2015 e 2016. Mas, com ou sem crescimento econômico, distribuição desproporcional dos recursos marca a história do país

Correio Braziliense
postado em 13/01/2020 04:33
Domingas Batista, desempregada, moradora da Estrutural:

O fraco desempenho da economia atinge todos os brasileiros e, naturalmente, é uma queixa generalizada no país. Mas, quando se avaliam os números, fica claro que, estando ou não em recessão, o Brasil distribui os recursos de forma desproporcional e tem a tradição de privilegiar quem já é socialmente favorecido. Com o Produto Interno Bruto (PIB) voltando a crescer, mesmo que de forma tímida, um dos desafios para os próximos anos — e décadas — é diminuir o abismo que separa os mais ricos dos mais pobres, cada vez maior.

Depois de um breve período de inclusão social, a distância entre quem tem muito e quem não tem quase nada voltou a se aprofundar nos últimos cinco anos. Em pesquisa elaborada com base em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a Fundação Getulio Vargas (FGV) Social constatou que, enquanto a população de baixa renda passou a ganhar ainda menos nesse período, os mais ricos melhoraram de vida.

O país passou “do crescimento inclusivo à recessão excludente” no período, alertou o coordenador da FGV Social, Marcelo Neri, ao divulgar a pesquisa, em agosto do ano passado. Os avanços percebidos até 2014 foram quase esquecidos nos anos seguintes, e muitos dos efeitos de políticas de inclusão, superados. Enquanto isso, o grupo mais afetado por desemprego e que paga proporcionalmente mais impostos é o que mais sofre com os efeitos da crise.

Mesmo com a economia desacelerada e o desemprego em alta, a elite não apenas manteve o padrão, como conseguiu subir ainda mais. Desde o fim de 2014 até o segundo trimestre de 2019, a renda da metade mais pobre da população caiu 17%, enquanto a dos 1% mais ricos fez o movimento contrário: cresceu 10%. O Brasil já conta 18 semestres seguidos com crescimento da concentração de renda, maior período da história. E tudo indica que as duas pontas da sociedade devem se afastar ainda mais, avaliam especialistas ouvidos pelo Correio.

Padrões


Diante dessa dinâmica, não é surpresa que, a cada R$ 100 da massa de rendimento do país, R$ 43,10 ficam com os 10% mais ricos, enquanto os 10% mais pobres mantêm R$ 0,80. Em 2018, metade da população ganhava, em média, R$ 820 por mês, menos do que um salário mínimo (R$ 954, à época), enquanto o rendimento médio dos 1% mais ricos era de R$ 27.774 mensais. Com esse valor, metade da população conseguiria se manter por quase três anos, nos padrões em que vive hoje.

Domingas Batista dos Santos, 46 anos, se contentaria com os R$ 820. Sem emprego há três anos, a moradora da Estrutural recorreu ao programa Bolsa Família, pelo qual recebia R$ 270 mensais. Mas, sem que ela soubesse o motivo, o benefício foi cortado há oito meses. “Eu nunca tinha passado por uma situação dessas. Só é dificuldade, até entrei em depressão. Se eu tivesse uma ocupação, tudo seria mais fácil”, diz. De fato, o alto índice de desemprego, que atinge 11,9 milhões de brasileiros, é o principal fator para a alta da desigualdade, de acordo com a FGV.

O cálculo de rendimento considera salários, aluguéis, benefícios sociais e qualquer outro tipo de dinheiro que entre na conta todo mês. Ainda assim, mesmo juntando todas as possíveis fontes, 13,5 milhões de brasileiros recebem menos que R$ 145 por mês e estão, pelos critérios do Banco Mundial, em situação de extrema pobreza. Para se ter noção da dimensão do número, ele equivale a mais do que toda a população da Bolívia ou de Portugal.

Piora


Não que a diferença social antes fosse pequena, em um país que carrega o peso de ser o sétimo país mais desigual no mundo, como mostra relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) divulgado em dezembro do ano passado. Já ruim, a colocação piorou em relação à de 2018, quando o país estava em nono lugar. Como os dados relativos à pesquisa são do ano imediatamente anterior, não podem ser atribuídos à gestão de Jair Bolsonaro.

Ainda assim, especialistas não têm visto engajamento do governo em reverter as perdas. Sem uma mudança drástica de direcionamento de políticas públicas, o cenário deve piorar nos próximos anos, acredita Kátia Maia, diretora executiva da Oxfam Brasil, entidade que trabalha na busca de soluções para o problema da pobreza, desigualdade e injustiça. Para ela, não há sinais de que o Brasil, a curto prazo, adote uma postura diferente, com foco em inclusão social.

Kátia argumenta que nenhuma das iniciativas que ajudaram a diminuir a desigualdade nas décadas passadas tem sido prioridade do atual governo. “A melhora teve a ver com aumento real do salário mínimo, com políticas sociais que fazem complemento de renda, com inclusão de negros, com cotas, com políticas públicas para mulheres. Estamos em um momento em que todas essas políticas estão andando pra trás”, avalia.

Algumas melhoras percebidas até 2014 indicavam a esperança de uma inversão nesse cenário. Mas os efeitos de políticas como a criação do Bolsa Família foram logo superados nos anos seguintes. Entre 2015 e 2017, com a inflação que chegou aos dois dígitos, o benefício do programa ficou congelado. Nesse período, a extrema pobreza aumentou 40%, segundo o estudo da FGV.

O enxugamento do programa é um dos problemas centrais que justificam o aumento da desigualdade, na visão do professor Naércio Menezes, coordenador do Centro de Políticas Públicas do Insper. O caminho para começar a reverter o problema, portanto, é priorizar o Bolsa Família. Para ele, é preciso aumentar o valor pago aos núcleos mais pobres e localizar as famílias que ainda não foram cadastradas. Em resumo, aumentar cobertura e valor.

Para o economista, esse é “o meio mais efetivo para reduzir desigualdade”. “Nos últimos anos, houve corte de beneficiários e reajuste tímido no valor pago. Tem que inverter essa política. Isso vale muito a pena, mesmo que gastem mais recursos, porque está formando crianças, crescendo famílias que seriam prejudicadas pelo resto da vida”, explica Menezes. “É importante, inclusive, para diminuir impactos da crise, porque ativa a economia local, e não só a curto prazo”, acrescenta.

A prioridade deve ser evitar que a situação piore para as famílias mais pobres, ressalta. A urgência se explica pelo fato de mais de 23,3 milhões de pessoas terem passado para a linha de pobreza no Brasil de 2015 a 2018. Mesmo que indicadores econômicos comecem a melhorar, o país ainda terá um longo caminho, caso queira correr atrás do prejuízo. Se o país crescer 2,5% por ano, de forma balanceada, na próxima década, o melhor resultado possível é voltar aos níveis de 2014 em 2030, pelos cálculos de Marcelo Neri. Quase uma década e meia perdida na luta pela erradicação da pobreza.

* Estagiário sob supervisão de Odail figueiredo

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