Economia

Deixar de viajar virou problema

Com a pandemia, aumentam os pedidos de cancelamento e de adiamento de passagens e hospedagens. Porém, empresas do setor de turismo têm se mostrado intransigentes em ressarcir o consumidor pelo valor pago

Correio Braziliense
postado em 14/03/2020 04:14
Cena comum no aeroporto de Guarulhos: viajantes com máscaras protetoras. Como isso não garante a integridade da saúde, desistências se avolumam

Diante da decisão da Organização Mundial da Saúde (OMS) de elevar para pandemia a infecção por coronavírus, muitas pessoas estão refletindo um pouco mais antes de embarcar em um avião, com destino às cidades ou países onde há risco iminente à saúde. Com as autoridades sanitárias recomendando que a população evite a exposição, têm crescido os pedidos dos consumidores para o cancelamento ou adiamento de viagens. Mas o que parece ser um processo simples, torna-se complicado: nenhum dos lados quer arcar com o prejuízo total de uma desistência e acumulam-se as reclamações de intransigência da parte das empresas do setor de turismo.

O Ministério Público Federal (MPF) chegou a recomendar à Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) a adoção de um ato normativo que assegurasse aos consumidores a possibilidade de cancelamento, sem taxas, de passagens aéreas nacionais e internacionais para destinos atingidos pela Covid-19. Para o MPF, a exigência de tarifas e multas em situações como a atual, de emergência mundial em saúde, é prática abusiva e proibida pelo Código de Defesa do Consumidor –– entende ainda que passagens compradas até 9 de março, com partida de aeroportos do Brasil, teriam direito a ressarcimento ou a remarcação, num prazo de até 12 meses.

A Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), porém, afirma que os passageiros estão sujeitos às regras das próprias companhias, com prazo de apenas sete dias para o chamado “direito ao arrependimento”, tendo em vista que, até o momento, não há indicação para restrições ao tráfego internacional, muito menos doméstico. Segundo o Ministério da Saúde, seriam apenas recomendações aos viajantes, visando reduzir a exposição à transmissão da doença. “No entanto, há que se dizer que o consumidor não tem amplo direito de arrependimento (desistência imotivada ou motivada por insuficientes razões jurídicas, como o temor de riscos exagerados eventualmente não existentes)”, informa a nota técnica da Secretaria Nacional do Consumidor.

Com viagem marcada para Porto Alegre nesta semana, a aposentada Maria Inês Castro, de 57 anos, precisou cancelar a ida por recomendação médica para o marido. “Ele é asmático e hipertenso, e nós não quisemos correr o risco. O médico dele aconselhou a não viajarmos”, explicou. Segundo ela, a companhia aérea afirmou que não segue uma cartilha de reembolso por conta da infecção dentro do país. “A Gol nos disse que não tinha nenhuma indicação de cancelamento, a não ser para a Itália, e que não tinha nada para viagens no Brasil. Então, eu tive que cancelar dentro das regras da companhia mesmo, com reembolso só mesmo da taxa de embarque. Pensamos até em pedir um atestado médico dele, mas achamos melhor não mexer com isso.”

Apesar de não ter ido, Inez não cancelou a passagem de volta, que está prevista para a próxima segunda-feira, e ainda está pensando no que fazer. “Se tiver direito, vou reivindicar. Sei que diante da situação hoje não é o principal, mas, mais para frente, quando as coisas se acalmarem. A feira que meu marido ia participar a trabalho também foi cancelada por causa do coronavírus. Então, não teria nem por que irmos de qualquer forma. No Booking, no qual eu fiz a reserva da hospedagem, ainda não me responderam, mas, pelo menos, não se negaram e disseram que vão estudar a situação”, disse.


Hospedagens


Não são só as companhias aéreas que precisam lidar com as crescentes desistências, mas todos os fornecedores de serviços na viagem. O Booking, que atua no setor de reservas de hospedagem, informou em nota que está oferecendo cancelamento gratuito ou modificação da reserva para pessoas viajando para as áreas mais afetadas. O Airbnb, plataforma que permite que pessoas ofereçam e busquem acomodações, anunciou o programa Reservas Mais Flexíveis para lidar com a emergência causada pelo surto de coronavírus. Segundo a empresa, um conjunto de ferramentas e programas foi desenvolvido para ajudar anfitriões e hóspedes a lidar com as incertezas, além de atender às necessidades dos clientes, de ambos os lados, de cancelar ou adiar planos de acomodação.

O estudante Luiz Fernando Braz, 22 anos, tinha viagem marcada para um festival em São Paulo, no primeiro fim de semana de abril, que foi suspenso pelas recomendações das organizações de saúde. Ele conseguiu de maneira descomplicada solicitar o reembolso total da hospedagem no aplicativo. “Eu pedi o cancelamento pelo Airbnb e vou receber de volta o valor integral. Até mesmo porque, na política deles, o cancelamento sem taxas pode ser feito em até 15 dias antes do check-in, e estava dentro desse prazo. Agora, com as passagens, não sei o que vou fazer. Não quero remarcar, quero meu dinheiro de volta, mas, sinceramente, não estou com muita esperança”, lamentou.

Segundo o professor de Direito do Consumidor do Centro Universitário Iesb, Igor Rodrigues, o Código de Defesa deve atribuir o risco da atividade para o fornecedor do serviço, por estar em vantagem econômica e considerando situações externas que não fazem parte da vontade de quem contratou a viagem. “É um momento difícil para as empresas do setor e pode gerar uma crise temporária, mas é inegável que não é o consumidor quem deve assumir esse prejuízo. As empresas precisam estar preparadas e serem solidárias, não deixando que as pessoas se submetam a esse risco e não espalhem ainda mais ainda a doença”, cobrou.

Embora defenda o ressarcimento integral, ele reconhece que há dificuldades devido à falta de determinação de restrição nacional. Há uma estrutura grande de órgãos de Defesa do Consumidor preparados receber essas reclamações. Em vários estados, o MP recomendou às grandes empresas de turismo, de cruzeiros e de transportes que atendam consumidores naquilo que pedem, seja no adiamento com o crédito para realizar a viagem em outro momento ou a devolução do valor pago.

* Estagiária sob supervisão de Fabio Grecchi


  • Como procurar seus direitos

    Para o caso de consumidores e empresas não chegarem a um acordo, mesmo após reclamações junto ao Procon ou à plataforma www.consumidor.gov.br, a alternativa nesses casos é judicializar a reclamação para tentar obter o ressarcimento.

Notícias pelo celular

Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.


Dê a sua opinião

O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.

Tags