Correio Braziliense
postado em 31/05/2020 04:06
Não, não acabou!
“Acabou, porra!”, berrou o presidente Jair Bolsonaro, contrariado com a decisão do ministro do STF, Alexandre de Moraes, de busca e apreensão de computadores e celulares de blogueiros, deputados e empresários bolsonaristas no inquérito que apura uma rede de fake news e difamação na internet. Sinto dizer, presidente, não acabou.
Os problemas estão só começando, agravados pelo vírus e recessão.
O número de contaminados e mortos pelo vírus Sars-CoV-2 continua aumentando e poderá ficar circulando por aí por muito tempo, mesmo com vacina, tal como o H1N1 e outros patógenos. Não há sinal, também, de que a recessão vá acabar com o fim do isolamento social, assim como tudo reabre na segunda-feira, depois do domingo, e vida que segue, sem nada anormal. O novo normal é a transformação.
A mortandade de empresas será a sequela imediata da pandemia, tal como o desemprego, cujo pico se dará em maio e junho. No bimestre de março e abril, a destruição líquida de empregos totalizou 1,1 milhão de carteiras assinadas. Outros 8,1 milhões de assalariados tiveram o contrato de trabalho suspenso e os salários reduzidos.
Mais de 40 milhões de informais ficaram subitamente sem renda com as regras de distanciamento social. Tais medidas enco-lheram a PEA, população economicamente ativa, razão de a taxa de desemprego até abril ter avançado relativamente pouco, para 12,6% dos ocupados, já que milhares não saíram em busca de empregos. Correram para as filas de pagamento do auxilio emergencial de R$ 600 a R$ 1,2 mil.
No papel de “fisicultor” de PIB, no que repete o ex-ministro Guido Mantega, Paulo Guedes, atual titular da Economia, voltou a esbanjar otimismo. Ele: o governo está seguro de que vai furar as duas ondas da crise, na saúde e na economia. Fato: no primeiro trimestre o PIB recuou 1,54% sobre o período de outubro a dezembro, quando já havia caído 0,2%. Em suma, a economia tendia ao quarto ano de desempenho medíocre, talvez até em recessão, muito antes da pandemia.
O país está longe de poder desabafar gritando “acabou”, ainda que Bolsonaro tivesse aludido ao sentimento de que ora o Congresso, ora o Judiciário, cerceariam suas ações, indiferente ao que consagra a Constituição: a independência dos três Poderes, além da regra de convivência harmoniosa entre eles. Quem mesmo semeia desarmonia?
Condicionantes da fortuna
A verdade é que tudo na vida depende das circunstâncias e, no caso de um governante eleito, do contexto do seu governo, do ânimo entre os eleitores pró e contra, das expectativas imediatas e do futuro. O que há, exatamente, em cada um desses condicionantes da fortuna?
O governante precavido olharia para trás, buscando as razões que o levaram a se eleger, e para frente, procurando entender as grandes tendências em curso no mundo. Bolsonaro certamente não se elegeu por querer armar a população, fazer vista grossa para a devastação ambiental, legalizar grilagem na Amazônia, elevar número de pontos para a perda da carteira de habilitação, implicar com cadei-rinha de bebê e com radares móveis nas estradas, os temas das medidas provisórias (MPs) que o Congresso reformou ou deixou caducar.
Mesmo intuitivamente, o sentimento popular há muito se move tanto pela percepção de que o país e a média das pessoas têm ficado para trás nos últimos anos, quanto pela noção, certa ou não, de que boa parte do retrocesso se deve à corrupção. A Bolsonaro coube liderar tais transformações. Ciclópicas, parece aturdido pelo que não sabe.
Com tendência de regressão
O que será depende de nós mesmos. Se dermos corda ao que não tem futuro em lugar algum, já que passou o tempo de governos cesaristas em sociedades complexas (e isso explica, também, parte dos reveses da campanha à reeleição de Donald Trump), a bolha social tem risco de explodir (como explode a cada tropeço do regime de partido único da China, com planejamento central e viés de mercado).
A economia é o espelho de nossa já longa estagnação, tendendo para a regressão. Como reporta o economista Nilson Teixeira em artigo no Valor, o PIB recuará cerca de 1% nesta década, de 2011 a 2020. Per capita, a renda vai diminuir mais de 9%. A renda média, a preços de 2017, encolherá de R$ 2.706 (ou US$ 940) em 2010 para R$ 2.475 (US$ 730) ao fim de 2020, e isso se a taxa cambial parar em R$ 5,50.
Em uma frase: estamos empobrecendo a passos largos. Não há solução fácil, uma bala de prata. Sabe-se que não será brigando com todos nem criando inimigos e conspirações em redes sociais que se chegará ao que fazer. Como diz o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, a quem cabe iniciar um processo de impeachment, “a hora é de mais diálogo, paciência e sensatez”. Isso não é frase feita nem fake news, como sabe a intelligentsia das corporações fardadas e civis.
Cabeça fria e inteligência
Na linguagem da informática, é preciso deletar o que não funciona e reiniciar noutro modo. A tecnologia é o fio condutor. Ela está no foco das atenções no combate ao vírus e na reabertura das economias em todo o mundo. A tecnologia se conecta umbilicalmente à educação, área em que desde sempre o país também é reprovado.
Estender tapete vermelho às novas iniciativas empresariais é outro caminho que funcionou para todas as economias bem-sucedidas, países em que ortodoxias entraram em campo só depois que o desenvolvimento estava maduro. Aqui, em especial, a pobreza é uma chaga a enfrentar não só por razões éticas e de justiça social, mas pragmáticas.
Sobre bravatas e palavrões
O mercado de massa alcança, no máximo, 30 milhões de consu-midores, contra mais de 100 milhões de pessoas na força de trabalho. Não faz sentido desperdiçar o potencial de consumo dos milhões de informais descobertos pelo governo graças ao auxílio emergencial.
Fake news é tratar essa legião de brasileiros como invisível. Ou maquinação de comunista se preocupar com a sua sorte. Isso, sim, é fake news.
Bravatas e palavrões, quando muito, ajudam a desopilar o fígado. É com cabeça fria, união e inteligência, onde quer que ela exista, que se acha a solução.
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