Economia

Jurisprudência sofre ameaça

Correio Braziliense
postado em 04/06/2020 04:04
Usina Nossa Senhora do Carmo (PE): crises desde a década de 1980

Não se pode “financeirizar” a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF). O alerta é do advogado Fernando Facury Skaff, professor de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), ao comentar a alegação da Advocacia-Geral da União (AGU) de que o custo para os cofres públicos, com as indenizações das usinas do setor sucroalcooleiro, pode chegar a R$ 70 bilhões. “Se olharmos que cada processo vai implicar não sei quantos milhões aos cofres públicos, acaba o direito. Isso é uma preocupação econômica, mas não pode ser jurídica. Se houve lesão, deve ser indenizada. Não se pode ‘financeirizar’ a análise jurídica para afastar o risco”, defendeu.


Skaff foi didático ao explicar o erro cometido pelo governo ao congelar os preços do álcool e do açúcar nas décadas de 1980 e 1990. “Naquela época, vários setores tiveram congelamento e problemas decorrentes disso. O governo entendeu que isso deveria ocorrer, todavia, em muitas situações, gerou prejuízo para empresas”, lembrou. O especialista pontuou que o que gera debate jurídico envolvendo direito e economia é a responsabilidade do Estado por intervenção no domínio econômico. “O Estado pode intervir, porém, pode ocorrer de gerar prejuízo para os agentes econômicos. E foi o que ocorreu com o setor sucroenergético naquela época.”


Como a venda de açúcar e álcool deveria ser tabelada, o governo contratou a Fundação Getulio Vargas (FGV) para pesquisa de campo. “A FGV verificou o custo de produção e a margem de lucro mínimo necessário. O que fez o governo? Pegou o valor (hipotético) de 100 e disse: vou pagar 80. Isso ocorreu periodicamente durante muitos anos”, explicou Skaff. Desde o primeiro caso que chegou no STF,  julgado em 2005, o precedente assentou posição de que houve dano e deveria ser indenizado. “Como deveria ser medido o dano? Pelos 20, que é diferença dos 100 que deveria ter sido o valor fixado menos os 80, preço efetivamente tabelado. O que as empresas buscam são esses 20, essa diferença hipotética”, esclareceu.


Segundo o professor, o artigo 37, no parágrafo 6º da Constituição Federal, estabelece que o Estado é obrigado a indenizar se causou prejuízo e deve fazê-lo no tamanho do dano. “É a relação de causa e efeito, sendo a causa o governo ter estabelecido o pagamento menor daquele que ele mesmo mandou apurar”, afirmou.


Para o especialista, a jurisprudência, que estabeleceu a fórmula de cálculo do dano, deve ser respeitada. No entanto, alertou que ela pode ser alterada, desde que haja fundada razão. “Não me parece que seja o caso, depois de 40 precedentes e diversos precatórios concedidos”, destacou. “Alguém poderia dizer que a FGV errou, contudo, foi contratada por mais de uma década. Se tivesse errado tanto, não teria ficado tanto tempo”, ponderou.


Skaff compartilha da mesma opinião da ex-ministra da AGU Grace Mendonça, de que se for feita uma revisão completa para o cálculo da indenização, a União poderá ter de pagar mais. “Se calcular lucros cessantes, danos emergentes e outras implicações, poderia gerar um impacto muito maior do que aquele que está sendo pedido”, disse.

 

Dirigente alerta sobre contradição
Se o Supremo Tribunal Federal (STF) entender que o cálculo das indenizações às usinas prejudicadas pelo tabelamento de preços nas décadas de 1980 e 1990 deve considerar o prejuízo contábil e não mais o custo econômico, a Justiça criará duas classes de cidadãos, na opinião de Evandro Gussi, presidente da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica). “Isso contraria o Estado de Direito”, sentenciou.


Segundo o dirigente, precatórios foram concedidos e ações julgadas por um critério. “Se mudar a jurisprudência, teremos duas classes de usinas. As que foram resguardadas pela jurisprudência do STF e as que não foram. Isso vai gerar dois tipos de agentes econômicos atingidos da mesma maneira na mesma época”, afirmou.


O que está por vir no julgamento do STF ameaça uma cadeia produtiva que se tornou um grande ativo do Brasil. Gussi lembrou que o setor sucroenergético surgiu por posição política e estratégica à época, com a crise do petróleo em 1973. “O governo brasileiro tomou uma decisão de não ficar dependente e criou o Pró-Álcool. Não se imaginava que seria tão bom e competente em relação ao meio ambiente”, destacou.


O etanol combustível é garantia para a qualidade do ar, pontuou o presidente da Unica. “Nova Delhi, capital da Índia, tem um índice médio de material particulado de 190 microgramas por metro cúbico (m³) de ar. A OMS (Organização Mundial de Saúde) recomenda que não passe de 25 por m³. Em São Paulo, são 16 microgramas por m³ e a razão determinante é a utilização do etanol, seja puro ou misturado na gasolina”, exemplificou.


Apesar disso, o setor sofreu várias crises. Gussi explicou que, no governo da ex-presidente Dilma, quando várias intervenções seguraram o preço da gasolina artificialmente, a competitividade do etanol foi destruída. “Quase uma centena de usinas fechou e outra centena foi para recuperação judicial”, lamentou. Mesmo assim, acrescentou o executivo, o setor se reconstruiu.
O ano de 2020 prometia, com a entrada do Renovabio, programa que redobrou a aposta brasileira na energia renovável e na qualidade do ar. Porém, a segunda turbulência do século foi a pandemia do novo coronavírus, associada a um controle de preços do petróleo feito por sauditas e russos.

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