Economia

Covid-19 e risco de mudança no STF ameaçam setor sucroenergético nacional

Após ter resistido a diversas crises, o setor sucroalcooleiro se vê ameaçado por uma tempestade perfeita em tempos de pandemia

Correio Braziliense
Correio Braziliense
postado em 10/06/2020 06:00
Plantação de cana-decúcarEssencial para o país, por gerar benefícios ambientais, sociais e econômicos, o setor sucroenergético atravessou várias crises e mostrou resiliência. Agora, no entanto, está envolto em uma tempestade perfeita. A pandemia do novo coronavírus provocou uma drástica redução no consumo de etanol e derrubou o preço da gasolina, retirando a competitividade do combustível limpo e renovável diante do derivado de petróleo. Como se isso não fosse suficiente, a cadeia da cana-de-açúcar, responsável por mais 2,3 milhões de empregos no Brasil, está diante de outro impasse, que compromete a segurança jurídica e os investimentos. Corre o risco de perder uma jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), que vigora há 15 anos e já garantiu indenização a várias usinas.

Para discutir o futuro do setor, que responde por 2% do Produto Interno Bruto (PIB) do país, foi realizado o Correio Talks: Covid-19 e as questões econômicas e jurídicas do setor sucroalcooleiro com as presenças do ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega, da ex-ministra da Advocacia-Geral da União (AGU) Grace Mendonça, do advogado Fernando Facury Skaff, professor de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), e do presidente da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica). A maior preocupação dos especialistas é sobre o impacto do julgamento em curso no STF, que trata da fórmula de cálculo para definir o valor da indenização devida pela União às usinas de álcool e açúcar em razão do tabelamento de preços dos produtos nas décadas de 1980 e 1990.

É consenso entre eles que o governo errou ao intervir e fixar preços abaixo do custo de produção das empresas e, por isso, deve pagar a conta. Contudo, apesar de a Justiça, em todas as instâncias, ter definido que houve dano e a União precisa indenizar as empresas prejudicadas, em um dos julgamentos, a Advocacia-Geral da União (AGU) recorreu e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que era preciso mudar a fórmula de apurar o prejuízo para calcular a indenização. A usina em questão, a Matary, recorreu à Suprema Corte, que iniciou o julgamento este ano.
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Duas classes

No STF, a decisão está em 3 a 2 em favor da empresa, porém, o ministro Alexandre de Morais pediu vista e suspendeu a votação. O processo pode voltar à pauta na próxima sexta-feira. E o temor do setor sucroenergético é de que a jurisprudência adotada há 15 anos em outras ações com o mesmo teor possa ser alterada. ;Isso criaria duas classes de usinas;, alerta Evandro Gussi, presidente da Unica. ;Vai gerar dois tipos de agentes econômicos atingidos da mesma maneira na mesma época, o que contraria o Estado de Direito;, ressalta.

O impasse, segundo os especialistas, cria mais uma insegurança jurídica ao setor, que foi penalizado por políticas intervencionistas do Estado em vários governos. Maílson da Nóbrega, que chefiava o Ministério da Fazenda em parte do período em que os preços do álcool e do açúcar foram tabelados, explica que, quando começaram a aparecer sinais de descontrole da inflação, o Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA) ; autarquia da administração federal extinta no governo Fernando Collor ;passou a fixar os valores dos produtos. A Fundação Getulio Vargas (FGV) foi contratada para apurar os preços.

O IAA, contudo, tabelou os preços, arbitrariamente, em 20% menos do que os apurados pela FGV. ;Os valores foram fixados abaixo até mesmo do custo de produção. Em 1989, as refinarias começaram a ganhar ações. E a forma de indenizar as usinas levava em conta o conceito econômico, usado tanto pelo governo quanto pela FGV para calcular os preços. Quando ministro da Fazenda, fui aconselhado, pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, a fazer um acordo formal;, conta Nóbrega.

Risco maior

A partir do recurso da AGU, que alega impacto de R$ 70 bilhões nos cofres públicos com a regra vigente, e do entendimento do STJ, a forma de indenizar as usinas deixaria de levar em conta o custo econômico para apurar o prejuízo contábil de cada uma das empresas. Ao promover essa mudança, alerta a ex-ministra da AGU Grace Mendonça, a União corre o risco de ter de pagar valores de indenização mais altos do que se for decidida a manutenção das regras vigentes.

;A jurisprudência reconhece o descompasso entre o preço tabelado e o estabelecido pela FGV, contratada pelo poder público para dar um olhar técnico ao valor. O que temos agora é a inserção da possibilidade de se ter indenização dos danos conforme o prejuízo contábil, o que não guarda nexo de causalidade com a ação do Estado;, afirma. ;A União poderá correr o risco de ter que indenizar valores muito além, inclusive mergulhando em território desconhecido, no qual não se tem como aferir precisamente o tamanho da conta;, acrescenta.

Divergência sobre os valores devidos

O cálculo pelo custo econômico vem sendo feito há 15 anos, a partir de uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de 2005. Cerca de 60% das ações transitadas em julgado seguem o critério de indenização definido pelo Supremo e 138 precatórios foram expedidos levando em consideração as regras vigentes. Do total das usinas prejudicadas, 72% já foram beneficiadas pelas decisões, representando 88% do valor envolvido. ;A AGU tem argumentado que o custo é de R$ 70 bilhões, mas o que falta pagar são R$ 8 bilhões;, explica o ex-ministro Maílson da Nóbrega. ;O que está em discussão são 12% do total;, ressalta.

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