Correio Braziliense
postado em 28/06/2020 04:14
Que agora funcioneA nova legislação sobre o saneamento, que visa atrair mais capital privado para uma atividade desdenhada desde sempre nos municípios, foi festejada pelos partidos reformistas e repudiada pelos de esquerda, ambos destacando o que a lei não contempla nem fará.
Nem significa a privatização dos recursos hídricos, como dizem os lobbies mais ligados ao sindicalismo das empresas estatais de saneamento, em correntes de esquerda da política, nem excluirá a União e os governos regionais da supervisão de um serviço carente de recursos para universalizar o tratamento de água e esgoto até 2033, meta do novo marco regulatório, além de atualizar e ampliar a rede sucateada em grandes cidades, como Rio de Janeiro.
A expectativa de que haverá uma transformação profunda num serviço intimamente associado ao bem estar e à saúde da população, além de impulsionar a economia e o emprego, é grande. E isso, em boa parte, devido ao que se alegou para induzir a sua aprovação no Congresso.
No Brasil, é forte o ranço contra o controle privado de serviços de utilidade pública, tipo a geração e a distribuição de energia e o saneamento, ambos setores dominados pelo Estado.
Dá-se pouca relevância ao fato de que não se vende o controle, seja do petróleo do pré-sal, do reservatório que represa a água que move as hidrelétricas e das nascentes e cursos dos rios. Concede-se tão somente a exploração econômica, que implica adicionar valor ao que sai da natureza, condicionada ao que dispõe a lei, e fiscaliza as agências regulatórias como da água (ANA), do petróleo (ANP) etc.
Não significa que sejam irreais as estimativas de que haverá uma onda de centenas de bilhões de reais de investimento privado, fala-se de R$ 700 bilhões na próxima década. Depende de como será feito.
Significa que a avaliação e os editais de venda de empresas hoje estatais ou de novas concessões terão de ter uma seriedade técnica raramente vista. As agências precisarão ser altamente capacitadas, não capitanias de partidos como costumam ser devido à leniência dos governantes. E, sim, é muito provável que algum funding público ou garantia do Tesouro e subsídios cruzados sejam necessários para que se viabilize o aporte privado em regiões extremamente carentes.
Os governantes vão nos surpreender? Até hoje só nos decepcionaram.
Para evitar frustrações
Duas regras não escritas devem ser consideradas para que, desta vez, a frustração não volte a chocar a sociedade. A primeira é dar menos peso ao potencial de recursos auferidos com o fim de pagar dívidas. A necessidade do saneamento transcende tais intenções, ainda que se conheça a situação de insolvência de estados e municípios.
A outra regra deveria ser mandatória a todos os eleitos: não ter a veleidade de mudar o que estiver feito e endereçado só para exibir a placa de autoria. A previsibilidade é crucial em investimentos de longo prazo e dependentes de fluxos contínuos de gastos e receitas.
A obra e o serviço concedidos não são do governante de ocasião, mas da sociedade. Mas ele será cobrado pelo mau serviço do operador da concessão. A cultura do bônus político só prejudica a população.
A experiência é rica de exemplos sobre o que sai errado no país. A regra, com exceções que a confirmam, é que o mau governante arruína a melhor das legislações e as boas intenções, especialmente ao ser levado pela ambição pessoal ou política a sabotar a governança.
Reforma começou com Temer
O novo marco regulatório do saneamento é outro dos temas da Ponte para o Futuro, o plano de governo de Michel Temer. Ele o iniciou com uma medida provisória editada em 2018, que caducou, mas reabriu o debate sobre o aumento do setor privado no saneamento.
O governo Jair Bolsonaro pouco interagiu com tal reforma, já que a discussão continuou no Congresso, mediando o interesse das empresas estatais de fornecimento de água, coleta e tratamento de esgoto — cujos contratos com municípios poderão ser estendidos por mais 30 anos sem licitação — e a segurança ao capital privado.
A verdade é que se Temer não tivesse sido alvejado pelo procurador Rodrigo Janot, depois da conversa imprópria com o empresário Joesley Batista, reformas como esta e a da previdência teriam sido aprovadas no Congresso, concluindo a travessia pensada pelos autores da Ponte para o Futuro.
Ajuste fiscal era a Ponte
A intenção original do plano nunca foi fazer do ajuste fiscal um programa permanente de governo, como se transformou, implicando a estagnação do crescimento depois da recessão do biênio 2015-16.
Os autores da Ponte para o Futuro não o conceberam considerando os termos rasos de uma política econômica liberal e, sim, o primado de restaurar a governança do setor público, começando pelo controle do gasto, visando devolver ao Estado alguma margem para a retomada do investimento em infraestrutura, em saúde e na educação.
E mais.
Dar ao Tesouro Nacional e ao Banco Central o que é essencial para a execução soberana da política econômica: autonomia em relação aos interesses do mercado financeiro. Essa é a independência crucial ao BC, não bem suas prerrogativas operacionais pedidas pelos que tiram proveito das agruras financeiras do país.
Falta consciência moral
As intenções foram distorcidas pela burocracia da área econômica, para a qual o plano era mais político do que executivo. É o que levou à prioridade do teto de gasto antes da reforma da previdência, do RH do funcionalismo e das funções e competências do setor público.
Fosse esse o caminho e não teria sido preciso alterar a Política Nacional de Saneamento Básico, de 2007, como se fez agora, já que o problema não está na lei, mas no alheamento dos governantes em relação a tudo o que a Constituição mandou universalizar: educação, saúde, água encanada, esgoto tratado, essas chagas de um país sem consciência moral. O que isso requer, leis e planos não resolvem.
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