Economia

Brasil S/A

Correio Braziliense
postado em 19/07/2020 04:05

Papo de responsa

Apesar de a pandemia do coronavírus estar longe de controlada e da combinação de economia debilitada, baixa tolerância da sociedade às medidas de isolamento e do mau exemplo do presidente Jair Bolsonaro em sua rebeldia contra o uso de máscara e menosprezo pelo efeito da doença, mesmo se dizendo também infectado, a atividade econômica começa a sair da dormência. Mas com custo alto e irreversível.


O de vidas abatidas só cessará quando houver vacina e tratamento eficientes. Já o custo econômico só se agravou, já que a atividade entrou em coma quando apareciam sinais de que 2020 seria outro ano de crescimento pífio, o quarto em estagnação depois da recessão do biênio 2015-16. A pandemia maltratada abalou o que estava ruim.


Essa é a discussão que tarda fazer.
Não se faz devido ao ambiente de reality show chumbrega criado pelas circunstâncias de Bolsonaro. Ele se faz de médico, ao receitar cloroquina, e diz que o culpado pelo desemprego é o Supremo Tribunal Federal (STF), ao ratificar que os estados e municípios têm autonomia constitucional para impor lockdowns e restringir a circulação de pessoas. Sugere não entender o tamanho de seu cargo.


Não passa semana, desde que assumiu, sem alguma treta em torno de si, dos filhos ou de apoiadores. Rende shows midiáticos, enquanto passa despercebido que nunca houve, a rigor, ministro de verdade na estratégica pasta da Educação; e, na Economia, há piloto e muitas dúvidas e incertezas sobre o mapa dessa viagem acidentada.
Os fatos são gritantes. Falam por si. Se o produto interno bruto, PIB, regredir cerca de 7% este ano (com as projeções indo de -4,5% no cenário oficial a -9,1% no do FMI), o crescimento médio anual nesta década de 2011-2020 será negativo, algo abaixo de 0,1%. Não fosse a epidemia, haveria expansão média de 1%, ainda um desastre.
A economia tem sido movida nos últimos 30 anos essencialmente pelo consumo das famílias e por gastos oficiais, e não pela expansão da capacidade produtiva. Investimento é o que move a roda da fortuna.


Mas, depois de breves surtos de desenvolvimento, volta-se sempre à estagnação, com momentos de regressão, como o atual, que a pandemia agravou. Qual o plano para sairmos da pasmaceira secular? O que se apresenta como plano parece mais lista de desejos escrita a partir da visão de um mundo que se perdeu na poeira do século passado.

Regente ou facilitador
Virou hegemônica a ideia de que o capital privado será o condutor da locomotiva do progresso. Ok, também o é nos EUA, no Japão, Índia etc. Só que em todos eles o Estado não é figurante. É ou regente de partitura escrita em comum acordo com o parlamento e o capital ou é facilitador, ainda que camuflado, pagando o grosso das pesquisas tecnológicas de ponta, aparando burocracias (que crescem como unha) e intervindo em tempos de recessão até com crédito a fundo perdido.


Oposição entre Estado e mercado livre é delírio ideológico de quem desconhece a diferença entre planejamento estatal e função indutora de políticas de interesse nacional, inclusive do capital privado, ao se assegurar paz social com medidas de bem-estar coletivo.


É neste contexto que se insere a preocupação com o deficit fiscal, não por causa dele em si, mas pelo mau uso do gasto público, que é sequela, por sua vez, da péssima governança do Estado e do sistema político. Isso nada tem a ver com socialdemocracia, como afirmam os economistas deste governo, mas com a apropriação do Estado pela sua burocracia, com a cumplicidade de políticos e grupos econômicos.

Condições para a fortuna

As condições para o crescimento vigoroso, algo acima de 2,5% ao ano todos os anos até 2030, são viáveis e necessárias num país com mais de dois terços da população na pobreza, com tudo por fazer e defasado tecnologicamente em relação ao resto do mundo. Isso num tempo em que o conhecimento é mais valioso que qualquer commodity.


De cima para baixo, é preciso taxa de juro da política monetária, a Selic, sempre abaixo da taxa de crescimento nominal do PIB. Isso nunca houve desde a reforma monetária de 1994. Esse é o princípio.


A segunda derivada é um orçamento de gasto corrente seja da União, de estados e municípios sustentado por impostos, deixando a fundos parafiscais (com recursos do Tesouro e emissões do Banco Central) e ao capital privado o funding para investimentos em infraestrutura e em pesquisa pura, primeiro passo da inovação tecnológica comercial.


As rubricas orçamentárias precisam ser avaliadas anualmente, assim como eventuais subsídios, o que pressupõe o fim da despesa chumbada em lei. Num ano, como o atual, a saúde requer mais gasto que outras contas, o que requer orçamento flexível. E parcimônia com as folhas dos servidores públicos, além de avaliações de seu desempenho.
 
Meta é superar a pobreza
De baixo para cima, o foco da política social deveria contemplar a pobreza não mais como despesa fiscal nem como meio de político sem voto e sem vergonha aliciar. O Brasil é o último grande mercado de massa potencial do mundo desde que Índia e Indonésia promoveram políticas afirmativas contra a pobreza, emulando EUA e China.
Quais os diferenciais? Mais garantia de emprego que de bônus, este reservado aos realmente necessitados. Título de posse de imóvel em ocupações irregulares, com crédito favorecido para melhora da casa, urbanização da área e saneamento universalizado. Incorporação das empresas informais sem gravames por longo tempo, dez anos ou mais.


A década que se iniciará será a mais difícil para o setor público desde 1994 — portanto, para o país, conforme os cenários até 2030 da Instituição Fiscal Independente do Senado. Sem expansão nutrida do PIB, que não virá com política econômica “by the book”, o quadro será de dificuldades e escassez permanentes. É o que temos não para hoje apenas. Para toda a nova década. Esse é o papo de responsa.

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