postado em 21/04/2009 19:19
Por Roberto Klotz
; Cobogó? Que diabos é isso?
Eu não sou de prestar atenção na conversa alheia. Entretanto, à s vezes é impossÃvel não ouvir.
Eu estava voltando para BrasÃlia sentado na poltrona do meio. Logo atrás de mim, naquele vôo lotado, estava uma mulher vistosa dos seus trinta anos. Entendi que ela não conhecia BrasÃlia e recebeu convite para trabalhar na capital. Ela queria saber como as pessoas moram em BrasÃlia e encontrou na poltrona vizinha um candango falante que deve ter sido guia turÃstico. Ambos falavam alto, o que tirou a atenção da minha leitura.
A primeira frase que ouvi foi dele.
; Os ricos, moram no lago. Os bem ricos, numa ponta de picolé.
; Como é? ; Indagou a mulher formando rima.
; As pessoas mais endinheiradas moram próximas do lago e os terrenos enormes que ficam nas margens são chamados pontas de picolé. Somente esses têm o privilégio do acesso à água. Acredito que o melhor lugar para morar é no Plano.
; As margens do lago são muito Ãngremes?
; Não. Por que?
; Você disse que preferia morar em lugar plano.
O vizinho, imagino, deu um sorriso, explicou que se referia ao Plano Piloto e falou das asas Sul e Norte arrematando que as melhores quadras eram as cem e as trezentos.
Naturalmente ela deve ter feito cara de dúvida, pois ele tornou a explicar que as quadras cem e trezentos ficavam a oeste do Eixão.
" /> Continuei sentado no meu lugar, preso ao cinto de segurança, mas com uma enorme vontade de olhar para trás para ver a cara de interrogação da mulher. ; Eixão? O avião deu uma chacoalhada de modo que perdi aquela explicação. Ouvi outra, já pela metade. ; ... os melhores apartamentos são os mais antigos, são amplos e vazados. ; E o que é um apartamento vazado? O candango chegou a ser irritante com sua longa e apaixonada explicação. ; Os prédios, conhecidos por blocos, ficam deitados. São compridos em vez de altos. O que faz com que haja maior número de apartamentos no mesmo andar e provoca menos áreas externas, logo há muitos apartamentos com apenas uma frente. Os antigos têm frente e fundo do lado oposto. São os vazados. Todos os apês antigos têm cobogó. ; Cobogó? Que diabos é isso? Adoro essa palavra formada pela primeira sÃlaba de três engenheiros que criaram uma parede de tijolos decorativos que permite ventilação e entrada de luz natural. De modo que só ouvi o final da frase do vizinho falante. ; ... além do que, são impressões digitais da cidade. DaÃ, ela perguntou qual era o prato tÃpico da cidade. E ele foi muito criativo na resposta. ; Não há nenhum prato tÃpico porque os moradores têm origens em todas as regiões brasileiras. Na cidade encontramos todos os temperos. Não há prato nem forma comum de preparar alguma iguaria. È usual a reunião das pessoas em torno de uma churrasqueira. Cada um preparando a carne, ou peixe, por que não, a seu modo. Quase todas as casas do Lago têm churrasqueiras. Quase todos os clubes têm churrasqueiras e também há muitas espalhadas nos parques públicos. O churrasco agrega as pessoas. O brasiliense aprendeu que para sobreviver ali deve unir-se com os outros, respeitando e ultrapassando barreiras regionais. ; Uau! Falou bonito! Só ouço as pessoas falarem mal de BrasÃlia, que é onde todos os corruptos se reúnem para roubar o resto dos brasileiros... Nesse momento a forasteira acertou o fÃgado de todos os brasilienses com um poderoso golpe direto. ; Pois é, esse lamentável rótulo pertencia ao Rio, enquanto capital. Mineiros pão-duros, baianos preguiçosos, paulistas trabalhadores. Rótulos servem apenas para garrafas. A corrupção está espalhada por todos os cantos do nosso paÃs. Não se salva nenhum enquanto permanecer a impunidade. A diferença é que em BrasÃlia as somas são maiores e a mÃdia está mais atenta. A mulher percebeu que cometeu uma gafe ao falar mal de BrasÃlia a um brasiliense. E procurou mudar de assunto: ; Faz muito tempo que você mora em BrasÃlia? Aliviado, o candango respondeu: ; Agora você já está falando como uma brasiliense legÃtima... ; Não entendi... ; Quando duas pessoas se conhecem, a primeira pergunta é: há quanto tempo mora na cidade? e a segunda, invariavelmente, é: de onde você veio? Agora, com o passar do tempo e o nascimento de uma geração de nascidos na capital, a coisa mudou um pouco. De qualquer forma, as perguntas sempre são bem-vindas para o inÃcio de uma conversa. ; E, há quanto tempo, afinal, você mora na cidade? ; Fui para lá no inÃcio da década de 70. No tempo em que a lenda dizia que quem se mudava para BrasÃlia passava pelo estágio dos três dês. Deslumbramento, decepção e desespero. Deslumbramento com as largas avenidas, arquitetura monumental e proximidade com o poder. Decepção ao perceber que morar próximo ao poder não os transforma em nobres. Desespero por não se adaptar à cidade e querer ir embora. ; Era tão ruim assim? ; É uma cidade de gente guerreira. Os perdedores sempre reclamam. O tempo incorporou outro dê. O dê da demência. ; Como assim? Não entendi... ; É quando as pessoas se acostumam, se entrosam e passam a amar BrasÃlia. ; Interessante essa lenda... ; Particularmente, adotei ainda os dês da devoção e defesa da cidade que tão bem me acolheu. Nesse momento a conversa dos dois foi interrompida pelo forte barulho do retrocesso das turbinas no pouso do avião. O avião taxiou e estacionou. Abri a porta do compartimento acima da cabeça, peguei minha sacola e olhei para os que me proporcionaram um vôo mais agradável.Ainda pensei em falar ao conterrâneo que as sÃlabas de cobogó foram formadas a partir dos nomes de Coimbra, Boekmann e Góis, mas apenas me despedi com um gesto de cabeça. » Confira o blog de Roberto Klotz: