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Projeto Mulheres Inspiradoras transforma a educação em escolas públicas

Projeto reconhecido no exterior e aplicado na rede pública do DF ensina valores humanistas para os alunos

Adriana Izel, Mariana Niederauer
postado em 21/04/2019 06:00
Seu Moisés e dona Djanira apresentaram aos filhos um lugar sagrado: a escola. Ensinaram a cada um dos seis que esse espaço era digno de reverência. Quem sabia ler e escrever, na visão do vendedor ambulante, não precisava de mais nada. Era por essa habilidade, da qual a pobreza o privou, que ele admirava ainda mais a companheira, que trabalhava como empregada doméstica para ajudar no sustento da família.

Gina Vieira Ponte, 47 anos, a segunda filha do casal, foi quem mais levou a sério o ensinamento, acredita a caçula, Jannece Ponte, 40, hoje também professora, por influência da irmã. ;Sempre víamos a Gina estudando, ela era incansável;, conta. Para cursar a Escola Normal ; de formação de docentes para a educação infantil e o primeiro ciclo do ensino fundamental ; Gina andava cerca de 10km, distância de casa, em Ceilândia Norte, até a instituição de ensino, na parte sul da região administrativa.

Assim que aprendeu a ler, ela alfabetizou os irmãos mais novos. ;Foi marcante para eles, que já entraram na escola sabendo ler e escrever;, relata a primogênita, Gisele Vieira Ponte Sirqueira, 49, que também é professora. Gina incorporou os superpoderes atribuídos à educação ; os quais dona Djanira reforçava a cada dia, com incentivos e lições firmes. A escola era, por isso, um lugar mágico para a ceilandense.

;Mas muito cedo eu vou percebendo o preconceito, o racismo, porque é importante dizer que, na escola pública de 50 anos atrás, em Brasília, estudava todo mundo. Não existia escola de pobre e escola de rico;, observa Gina. ;Diante de um erro que eu cometia, a reação da professora era uma e, de uma menina em situação privilegiada, era outra. No meu caso, sempre tinha grito, sempre tinha castigo;, relembra.

Os 38 anos na rede pública ; como estudante e, depois, professora ; fizeram-na despertar para várias dessas mazelas. Em 2003, após anos de trabalho apenas com crianças, começou a dar aulas a adolescentes e percebeu que a escola, no formato tradicional, não os mobilizava. Veio então a necessidade de reforçar ainda mais a própria formação, com curso de nível superior e especializações. Buscou, no conhecimento, ferramentas para lidar com uma educação ainda muito atrelada à lógica da subalternidade e da obediência. Repensou processos e privilegiou a avaliação formativa dos alunos.

;O projeto Mulheres Inspiradoras materializa esses 38 anos de imersão na escola pública;, destaca. Reconhecida internacional e nacionalmente, a iniciativa nasceu em 2014, em uma das unidades de ensino fundamental de Ceilândia, a sua quebrada, como Gina define. O trabalho alcança 41 escolas do Distrito Federal, onde virou política pública no ano passado, além de colégios municipais de Campo Grande.

A professora nunca esteve sozinha nessa empreitada. Todas as mulheres representadas ; negras, brancas, periféricas ; estão ali. Assim como parceiros, professores e gestores que contribuíram para compartilhar esse conhecimento, resultado da busca pessoal pelo próprio lugar no mundo. ;O projeto é fruto de uma vida inteira, que começa lá com minha mãe preta, que era contadora de histórias, com a minha bisavó, que era filha de um homem alforriado. Isso não começa cinco anos atrás.;

Identidade

;O cabelo crespo de uma mulher negra é a coroa de uma rainha que já nasce pronta.; Os versos de Só por hoje vou deixar o meu cabelo em paz, de Cristiane Sobral, mudaram a vida de Gina. ;Foi a primeira vez que eu li alguma coisa sobre mulheres negras em que eu não fosse subalternizada;, diz. A dor do racismo deu lugar a uma bela metáfora, que a definia e a libertava para escancarar a convicção na própria raça. ;É como se ali eu sentisse vontade de gritar minha negritude.;

Foi o Mulheres Inspiradoras que proporcionou esse encontro com uma autora também negra. Sensação semelhante ela só tinha vivenciado aos 8 anos, quando a professora Creusa Pereira dos Santos elogiou, pela primeira vez, as tranças que a mãe, Djanira, havia penteado em seus cabelos. ;O olhar de uma professora tem uma potência muito grande;, atesta. Foi também a docente que a alfabetizou. ;Ela me ajudou a ressignificar a percepção que eu tinha de mim mesma, me deu condições de me sentir capaz. Hoje, eu desconfio que eu já sabia ler, mas eu não acreditava;, relata.

Agora, inspirada pelo sorriso do filho, Luís Guilherme, 8, e com o apoio incondicional do marido, Edson Santos, 51, busca honrar a memória dos pais e celebra a escola pública como espaço para fortalecimento da democracia. ;Eu tenho muito clareza de que, para eu estar aqui, meu pai e minha mãe se sacrificaram. Muitas mulheres negras se sacrificaram. Então, eu estou a serviço dessas pessoas;, afirma. Outro objetivo central é contribuir para gerar representação diferente do que é ser professor. ;Esse lugar que eu ocupo é muito importante. Eu desejo deixar como legado que outros profissionais da educação não percam isso de vista.;
41
Número de escolas no DF que adotam o projeto Mulheres Inspiradoras

Garantia de direitos

A pesquisadora e antropóloga Débora Diniz é um dos nomes de referência no mundo quando o assunto é a luta pelos direitos das mulheres. Há 20 anos, ela criou a Anis ; Instituto de Bioética, Diretos Humanos e Gênero, organização voltada para a pesquisa e assessoramento de estudos relacionados aos direitos fundamentais das mulheres. Em 2014, trouxe à tona o debate sobre a descriminalização do aborto de fetos anencéfalos. Dois anos depois, foi citada na lista dos 100 pensadores globais pela revista Foreign Policy e, no ano seguinte, ganhou o Prêmio Jabuti pelo livro Zika: Do sertão nordestino à ameaça global.

Momentos esses que ela vivenciou em Brasília, cidade que foi forçada a deixar no ano passado após sofrer ameaças de morte devido à militância relacionada às questões de gênero. ;Tivemos que deixar o país. Não estava nos nossos planos de maneira alguma. Foi integralmente uma saída de todas as nossas coisas. Foi uma coisa muito violenta. Mas eu não podia colocar em dúvida a integridade das outras pessoas;, afirma.

Dos 49 anos, 35 foram em Brasília. Natural de Maceió, Débora viveu no Rio de Janeiro e em Recife antes de chegar à capital federal, aos 14 anos. Cresceu na Asa Norte e estudou na Asa Sul, em uma adolescência vivenciada na W3, ao som da Legião Urbana, nas sessões do Cine Karim (112/113 Sul) e em busca de livros em uma importante livraria localizada no Conic. ;As lembranças da minha adolescência em Brasília são as mesmas dessa geração, com uma vida que existia intensa nas quadras.;

Débora Diniz costuma dizer que sua trajetória se confunde com a da cidade e, principalmente, com a da Universidade de Brasília (UnB). Toda a vida acadêmica da pesquisadora foi galgada lá. Na universidade, gradou-se em ciências sociais, fez mestrado e doutorado em antropologia, viajou para o Japão com uma bolsa de estudos e depois se tornou professora da Faculdade de Direito. ;Eu me considero um produto de Brasília. A minha história também é a da cidade;, afirma. ;É a vida com a universidade que me deu uma visão muito particular do que é a vida em Brasília;, completa.

Apesar de ter crescido no Plano Piloto, a alagoana aponta que a experiência na UnB foi o que lhe permitiu vivenciar as diferentes características da vida candanga. ;Consegui conhecer a vida de mulheres na cadeia, na Colmeia. Esse mundo também voltou para perto de mim. Foi a UnB que me permitiu ter egressas do sistema socioeducativo trabalhando comigo. Até onde eu sei, foi a primeira vez que o CNPq teve estudantes socioeducativas trabalhando com pesquisadores. E isso é a cara da UnB, um espaço que reconhece os sistemas de segregação e busca formas de reparar, de dar igualdade. Isso tudo faz parte da minha trajetória acadêmica em Brasília.;

Futuro

O distanciamento forçado da capital federal não faz com que Débora Diniz se afastasse da cidade. Pelo contrário, ela deseja um futuro muito melhor para o quadradinho, que se aproxime da missão quando a cidade foi criada. ;Que seja uma verdadeira cidade, com um projeto original mais igualitário, o que nós vivemos cada vez mais é uma divisão geográfica social. Que Brasília seja capaz de viver o seu projeto com maior liberdade, com maior encontro entre as comunidades, não apenas no DF, mas no país inteiro. E que ela seja exemplo de uma cidade que foi planejada e desenhada para uma boa vida.;


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