As esquecidas da abolição

Quase 60% das domésticas que trabalham no DF vêm do nordeste

São mulheres mais vulneráveis a ter os direitos negados. Mas há quem conseguiu, com força de vontade e auxílio, melhorar de vida

postado em 13/11/2012 06:05
Nascida no Piauí, Durcelene foi dada pela mãe a um casal da cidade aos 9 anos. Hoje, ela trabalha como manicure

Um requisito incomum no caso de outras profissões aparece com frequência em anúncios de emprego para contratação de domésticas nos classificados de Brasília: ;Pref. recém chegadas;, avisam os futuros patrões. A expressão mostra o quanto a ocupação na capital federal é quase exclusivamente desempenhada por gente de fora, sobretudo de lugares mais pobres do país. Dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos apontam que 57,1% das mulheres que exercem a profissão nas casas do Distrito Federal vieram do Nordeste. A predileção pelas migrantes, entretanto, não está ligada a algum dote especial. Sob a condição de anonimato, contratantes admitem as verdadeiras razões ; as empregadas tendem a ficar mais tempo no trabalho, inclusive nos fins de semana, por não conhecerem ninguém, além de apresentarem um nível de tolerância maior em relação a jornadas longas, falta de carteira assinada e outros direitos suprimidos.

;Não é maldade. Apenas quero ter certeza se a pessoa vai querer ficar comigo antes de assinar carteira, toda essa burocracia;, diz uma mulher que tenta, há cerca de 15 dias, contratar alguém que durma no emprego. As razões apresentadas pelos patrões são muitas e o discurso, quase sempre, resvala para a tese de que todos ganham ; quem contrata teria que ensinar o serviço e, por isso, acha justo que inicialmente parte dos direitos seja desrespeitada. Para Rebecca Tavares, diretora regional da ONU Mulheres Brasil e Cone Sul, a ideia não passa de ranço cultural que leva as domésticas a serem vistas como ;serviçais;. ;É um trabalho subvalorizado, invisível e executado principalmente por mulheres e meninas, muitas das quais são migrantes ou membros de comunidades desfavorecidas e, portanto, particularmente vulneráveis à discriminação em relação às condições de emprego e trabalho, bem como outros abusos de direitos humanos;, afirma.

Durcelene Cândida Pereira se enquadra perfeitamente na definição da diretora da ONU. Com 10 irmãos e uma vida difícil em Monte Alegre do Piauí, ela foi dada pela mãe, aos 9 anos, a um casal de profissionais liberais de Brasília. Viveu com a família até os 17, cuidando dos filhos dos novos ;pais; e ajudando na limpeza, especialmente nos fins de semana. De segunda a sexta-feira, tinha um turno livre para estudar na escola pública próxima. ;Eles diziam, para os amigos, que era como se eu fosse uma filha. Mas eu sabia o meu lugar. Dormia com a outra empregada. Nosso quarto tinha até uma campainha para a hora de acordar;, lembra Durce. O local de comer também era separado. ;Às vezes, eles me deixavam almoçar na mesa. Eram os meninos (filhos dos donos da casa) que de vez em quando vinham comer comigo na cozinha;, lembra a mulher, hoje com 41 anos.

A falta de notícias da própria família se manteve por anos, assim como o desejo crescente de mais liberdade em uma Durcelene já adolescente. ;Eu só podia ir aos lugares que eles fossem. Então começamos a ter conflitos. Daí reencontrei uma tia, que estava morando no Núcleo Bandeirante e, com 17 anos, resolvi sair de lá, depois de uma discussão;, afirma. Apesar de considerar que houve exploração por parte da família, Durcelene diz ter gratidão por eles. ;Reconheço a parte boa. Aprendi muito com a criação e educação que eles me deram. Sou bem diferente dos meus irmãos, hoje, por exemplo, por causa disso. Eu realmente não era a filha que eles diziam, mas teve o lado positivo;, comenta Durcelene, acrescentando que perdeu contato com a família desde que saiu.

Durante os seis anos seguintes, ela trabalhou como doméstica no DF. Até que uma guinada aconteceu em sua vida, quando aprendeu a fazer unhas. Nunca mais largou o ofício de manicure, que lhe garante hoje uma renda superior a R$ 4 mil. Assim como Durcelene, é cada vez mais comum a saída do emprego doméstico para outros ramos. Na história delas, uma boa dose de coragem, força de vontade e muitas vezes a presença de uma patroa justa. ;Se a pessoa tem seus direitos respeitados, ela tem autoestima, ela pode fazer planos porque sabe que é parte da Previdência, que vai ter 13; salário, que é um trabalhador, e não uma subcategoria;, afirma Francisco Xavier, diretor da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad).

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