postado em 15/08/2014 09:31
Da última vez em que viu a mãe, faxineira, ela estava deitada na cama, rodeada pelos cinco filhos, entre eles, um recém-nascido, que hoje está com 14 anos. O pai, pedreiro, deu à mulher um dinheiro para a comida do dia e saiu para o trabalho. Anderson era o mais velho, tinha 6 anos. A mãe se levantou e, em vez de ir às compras, começou a arrumar as malas.- Aonde você vai? Aonde você vai?, perguntou Anderson, aflito.
- Vou ali e já volto.
As crianças ficaram sozinhas até o fim do dia, como de hábito. Quando chegou, o pai perguntou:
- Cadê a mãe de vocês?
- Ela disse que ia ali e estava voltando;
O pai foi ao quarto e voltou:
- A mãe de vocês foi embora.
Anderson só se lembra dessa cena. Talvez ninguém tenha chorado, nem reclamado. A vida seguiu quase do mesmo jeito de antes. As crianças na casa em Samambaia, e a vizinha cuidando do bebê. Mais ou menos um mês depois, o Conselho Tutelar levou os três meninos e as duas meninas para o então CRT (Centro de Recepção e Triagem), abrigo transitório do governo do Distrito Federal para crianças e adolescentes.
[SAIBAMAIS]Não ficaram nem uma semana e voltaram para casa, graças à interferência imediata do pai, que não estava em casa quando os filhos foram levados pelo Conselho Tutelar. Mas as crianças continuaram sozinhas até que, poucos dias depois, foram levadas novamente para o abrigo, desta vez, sem retorno. Do CRT, foram transferidas para uma instituição de acolhimento em Taguatinga Norte.
Depois de sete anos vivendo juntos, embora em casas-lar separadas, os irmãos sofreriam a terceira separação. Já não do pai, já não da mãe, mas o afastamento entre irmãos. Os dois menores, de 7 e 8 anos, foram adotados por dois casais franceses e levados para cidades distintas da França. ;Me senti muito mal. Eles eram como se fossem meus filhos. Eu os protegia de tudo, brincava com eles; Até hoje, sinto muita falta deles;, diz Anderson. Houve mais uma fratura afetiva na família: o pai, que os visitava com alguma frequência, desapareceu depois que os dois caçulas foram embora.
Ainda com um pé na adolescência, Anderson Ribeiro Evangelista tem a seriedade contrita de um adulto tomado de responsabilidades. O irmão adotado aos 8 anos mudou de nome: em vez de Mateus, Matias, e gostou da troca. Mas teve dificuldade de adaptação: ;Ele não queria deixar a gente. Ficou doente, teve que passar por psicólogo, mas com o tempo foi superando tudo isso. Hoje, faz hipismo, toca saxofone, faz um monte de coisas. Converso com eles pelas redes sociais. Estamos sempre em contato com eles para não perder o vínculo.;
Anderson teve a chance de ser adotado, mas não quis. Só aceitaria se fosse com os quatro irmãos. Estudante da escola pública no ensino fundamental e médio, Anderson não se avexava quando os coleguinhas perguntavam onde ele morava. ;Nunca tive vergonha de dizer: ;Moro num abrigo;;. Atiçava a curiosidade das crianças: ;Como é lá?;. Ao que o menino respondia: ;É normal. Tem sala, cozinha, banheiro. É uma família com mãe social. Tem parquinho, tem lugar pra jogar bola;. Pronto. Atiçava o espírito de aventura dos amiguinhos. ;Eles vinham, eu mostrava a casa pra eles, a gente jogava bola, lanchava.; No fim, havia sempre quem dizia: ;Poxa, Anderson, gostei demais daqui. Não tem como a gente morar aqui?;
Esperança
A instituição onde mora é bem-estruturada, em comparação com a média das casas de acolhimento do Distrito Federal. Anderson acabou criando forte vínculo afetivo com o presidente do abrigo, um advogado, a quem chama de pai e que lhe serve de referência. ;As pessoas falam assim: toda criança tem que ter uma pessoa em quem se espelhar, para seguir aquele exemplo. Então, desde pequeno, espelhei-me nele. Um cara de sucesso, que tem talento. Fui me apaixonando por livros de direito. Achava aquilo muito massa. Aprendia o significado de algumas palavras difíceis, e as pessoas ficavam espantadas; ; ensaia um sorriso suave, quase imperceptível.
Terminado o curso de análise e desenvolvimento de sistemas, Anderson quer arrumar um emprego e voltar à faculdade para fazer o desejado direito. ;O próximo passo será construir a minha família. Todo mundo sonha em ter uma família e continuar a vida. E quero; ter um abrigo. Comentei com o meu pai (o presidente da instituição que o acolhe) e ele: ;Cara, não mexe com isso. Você não vê o tanto de problema que tenho aqui?;;. Anderson esboça mais um sorriso contido.
As crianças e os adolescentes do sonhado abrigo de Anderson haverão de ter um exemplo para se mirar. ;Desde que perdi o contato com os meus pais, sempre procurei não lembrar o que aconteceu no passado. Focando no seu futuro, você consegue se desenvolver mais. Tem criança no abrigo que fica com aquilo na cabeça (o abandono). Tem criança que demora a esquecer os pais, que eles não têm condições, que a mãe é usuária de droga, que o pai morreu; Se você fica pensando, pensando, pensando (no passado), você não vive, fica parado naquele lugar. Fica com a esperança de que eles vão voltar.;
Nesse ponto, Anderson hesita, silencia, abaixa levemente os olhos: ;Teve um tempo em que tive esperança de que meus pais voltariam. Mas fui amadurecendo e disse pra mim: ;Está errado;. Se hoje tenho a compreensão de que eles não tiveram condições de ficar com a gente ou porque não quiseram, não sei, vou viver a minha vida, vou estudar, vou me profissionalizar. Sempre procurei estar ocupado, não gosto de ficar parado, e isso me ajudou muito a esquecer o que aconteceu.;
Mãe
Dois anos atrás, o esquecimento se dissolveu num telefonema: ;Anderson, sua mãe está aqui;. O coração acelerou. Ele e as duas meninas, que continuam no abrigo, foram ao encontro da inesperada visitante. ;Oi, tudo bem? Foi o que o filho mais velho conseguiu dizer à mãe, que começou a chorar. A mais velha das meninas se sentiu mais à vontade no contato com ela.
Diante da frieza de Anderson e da outra irmã, a visitante ameaçou: ;Se vocês não falarem comigo, nunca mais virei aqui.; Anderson respondeu: ;Você é quem sabe.; Despediu-se e saiu. No caminho, ficou pensando: ;Poxa, ela não quis saber se a gente está bem, se está precisando de alguma coisa. Não quis contar por que nos abandonou;.
Desde então, a irmã mais velha de Anderson continuou a manter contato com a mãe. Durante certo tempo, os irmãos se desentenderam a esse respeito. Até que, tacitamente, para evitar brigas, não se fala mais no assunto.
A mais velha se casou e deixou o abrigo. A outra, ainda menor de 18 anos, mora com Anderson na instituição. Embora esteja com 20 anos e, portanto, já tivesse de ter deixado o lugar há dois anos, ele continua na casa que o recebeu 13 anos atrás. Envolveu-se tanto com o funcionamento do abrigo que virou diretor do Conselho Suplente da entidade. Entre suas muitas atribuições, está a de acompanhar as tentativas de reintegração das crianças às famílias. ;Quando sair daqui, vou continuar fazendo o que é preciso.; Ajudar-se a si mesmo ajudando outros meninos Andersons.