Depois do abrigo

A menina que tirou a mãe das ruas

O Correio conta a história de Josiane Sampaio, a jovem de 19 anos que passou a infância e parte da juventude nas ruas da capital federal. É a quinta reportagem da série que detalha a vida de quem saiu de instituições de acolhimento para comemorar conquistas e servir de exemplo

postado em 29/08/2014 06:31
Josiane recebeu, aos 13 anos, as vacinas aplicadas em bebês e, aos 17, comeu o primeiro hambúrguer

Mais da metade dos 19 anos de Josiane Pereira Sampaio foram vividos sem paredes, sem teto, sem cama, sem banheiro, sem escola, sem amigos, sem vacinas. A casa em que ela morava, com a mãe e três irmãos, era o próprio corpo e o corpo de todos eles, sempre juntos, sempre contando um com o outro. A cidade onde viviam começava e terminava na Rodoviária do Plano Piloto, com algumas aventuras pelos ermos dos fundos da L2 Norte e pela antiga Rodoferroviária.

Até os 11 anos, Josiane não sabia que as pessoas (e, hoje, até os cachorros) comemoravam aniversário. Também não sabia que aquelas luzes de todo dezembro era o Natal e que se comemorava o nascimento de Cristo com troca de presente. Só aos 13, Josiane recebeu as vacinas aplicadas nos bebês. Aos 17, comeu o primeiro hambúrguer. Era uma menina de rua, depois, uma garota de abrigo e, há um ano, é funcionária de uma grande corporação. Tirou a mãe das ruas e reuniu a família numa casa, no Paranoá.

[SAIBAMAIS]Quando marquei com Josiane, já sabia que ela tinha sido moradora de rua. Esperava encontrar uma jovem muito mais madura do que eu dadas as experiências vividas. Encontrei alguém forte, confiante, mas, ao mesmo tempo, conheci uma moça inexperiente em muitos aspectos da vida, em se comparando com outras de mesma idade, tempo e lugar. Embora só aos 11 tenha adquirido o hábito de escovar os dentes diariamente, a ex-menina de rua tem uma dentição perfeita. E fica com as bochechas coradas a cada pergunta que pede uma resposta de conteúdo um pouco mais privativo. Quebra o constrangimento com um sorriso largo.

Josiane viveu na rua, mas nunca deixou de viver dentro dela mesma. ;Desde pequena, eu me perguntava o tempo todo se a minha vida seria sempre assim.; Dormiam no gramado (;verde;) nas proximidades da Rodoviária ou em algum mocó nas cercanias do cruzamento dos dois eixos. (Qualquer lugar que tenha duas paredes na perpendicular serve de proteção para os moradores de rua).

Goiana de Alexânia, Josiane vivia com a mãe e os quatro irmãos em Anápolis. ;Eu lembro que a gente morava em casa alugada, mas a gente mudava muito porque o meu irmão mais velho era muito rebelde.; Mesmo quando tinham um teto onde morar, perambulavam pelas ruas. ;A minha mãe pedia, a gente só acompanhava.; Os quatro andarilhos vieram para Brasília em 2006, um pouco antes, um pouco depois, não sabe a data certa.

Embora a mãe da mãe morasse em Santa Maria, ficaram vivendo na antiga Rodoferroviária. Depois, desceram para a Rodoviária do Plano. ;Hoje, quando passo pela Pastelaria Viçosa, eu lembro que ficava lá pedindo, com o bolso cheio de moedas.; Josiane fica novamente ruborizada. Pergunto se ela tem vergonha de contar que era pedinte. ;Não, de jeito nenhum. Tenho até orgulho de mostrar de onde eu vim e onde estou hoje.;

Nunca passaram fome, mesmo na rua. Sentiam frio quando ficavam sem cobertores. Medo, muito. Ele se espraiava pelas madrugadas. Era o fantasma dos homens e dos meninos que molestavam meninas nas madrugadas. Os quatro dormiam sempre numa mesma fileira: o irmão do meio, a mãe, a caçula e Josiane. Ao mesmo tempo que protegia a irmã menor, a mais velha ficava vulnerável às investidas dos terrores da madrugada. ;Acordava com uma mão passando em mim e gritava, chorava. Nossa mãe, uma baiana arretada, partia para cima dos caras, e eles saíam correndo.;

Amadurecimento

Mais de seis meses depois de perambularem pela Rodoviária, o Conselho Tutelar ;deu um arrastão; e levou para a Vara da Infância e da Juventude (VIJ) os três filhos da baiana arretada. Foi um chororô e um auê. ;Colocaram a gente numa sala e levaram a nossa mãe pra outra. A gente sempre foi muito apegado com a nossa mãe. Cadê a nossa mãe? Fomos pra cima do segurança, mordemos ele, e ele me deu um tapa.; Não há raiva, não há cinismo, não há orgulho no tom de voz de Josiane.

Finalmente, a Vara da Infância localizou a avó das três crianças e as encaminhou, com a mãe, para Santa Maria. Seguiu-se um período de ainda mais turbulência: mãe e filhos não se davam bem com a avó. E, depois de algumas idas e vindas, os quatro voltaram para a Rodoviária. Mais ou menos um ano depois da chegada a Brasília, começou a rotina de apreensões na rua, encaminhamentos a instituições de acolhimento e fugas.

As três crianças foram levadas, primeiramente, para o antigo CRT de Taguatinga. Por pior que fosse, o abrigo do governo permitiu que Josiane conhecesse duas mães sociais que lhe deram suporte afetivo para que ela pudesse fazer escolhas. Percebeu que havia chegado a hora quando os dois irmãos mais novos a convidaram pra fugir, mais uma vez. ;Eu estava com a roupa da natação. E falei: ;Não vou. Não quero mais essa vida de morar na rua. Quero estudar, quero ser alguém;.; Os irmãos insistiram. Josiane não cedeu. Eles foram ao encontro da mãe, que continuava na Rodoviária do Plano.

;Aos 11 anos, amadureci. Aos 11 anos, criei responsabilidade.; Aos 11, Josiane ficou menstruada. A mãe nunca havia falado sobre o assunto; a mãe social, sim. ;Quando vi, chorei e corri pra ela (a mãe social), abracei-a e chorei, chorei. Tinha muito apego com ela.; Aos 11, não sabia ler nem escrever. A mãe social juntava as letras para ela ; ;fá, fé, fi, fó, fu;. No abrigo, tinha a rotina do afeto, tinha roupa limpa e seis refeições por dia. ;Roupa minha! Na rua, a gente usava roupa que ganhava e, depois, jogava fora porque não tinha como lavar.;

Festa de aniversário

Não se passou muito tempo, e os dois pequenos fugitivos foram retirados novamente das ruas. Os três irmãos mudaram de abrigo. Foram para uma instituição privada, bem estruturada, na Asa Norte, onde surgiam mais largos caminhos para Josiane. Frequentou cursos, concluiu o ensino médio, fez estágios, até vencer uma seleção para emprego com carteira assinada. Com o salário, alugou a casa do Paranoá e tirou a mãe das ruas e os dois irmãos do abrigo. A instituição equipou a moradia com geladeira, fogão, cama.

Foi no serviço de acolhimento que Josiane conheceu Marcos Aurélio Araújo dos Santos (personagem da semana passada desta série). Apaixonaram-se. Foi o primeiro namorado, ;o primeiro tudo.; Marcos forçou a namorada a mudar o vocabulário. ;Eu só falava gíria. Veia, tá ligado, pô; Ele disse que não conversaria comigo se eu falasse gíria;;

Apaixonados pela dança, ajudaram-se durante três anos até que, em 2 de agosto passado, separaram-se. Um e outro só falaram bem de um e do outro para a repórter. Os dois querem montar uma academia de dança de salão, separados ou, quem sabe, juntos.

O irmão mais velho de Josiane veio para Brasília e caiu no mundo do crime. Está na Papuda. A irmã de 17 anos teve um filho e está grávida do segundo. Nem ela nem o mais novo, de 15 anos, querem estudar. Embora ouçam, todos os dias, a preleção da irmã mais velha: ;Um dia, eu caso e vou cuidar da minha vida. E vocês vão ficar assim;. Por enquanto, não surtiu efeito, mas a hora da revelação é sempre um mistério.

Em dezembro passado, a família teve o primeiro Natal de suas vidas. A mãe ganhou a primeira festa de aniversário: 40 velinhas, bolo recheado e Coca-Cola.

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