Longa-metragens
BRANCO SAI. PRETO FICA
De Ardiley Queirós
;Parecia que a gente tava morto já, sabe?; ; na frase, saída do crítico e divertido longa de Adirley Queirós, reside a dor de um personagem agredido por violência institucionalizada. Para além de denunciar, o diretor redimensiona camadas para os papeis paralelos de um documentário científico, sim, mas na melhor das ficções: lá estão o atleta paraolímpico Cláudio Irineu, o comunicativo Markin, o gaiato Dilmar Durães e DJ Jamaika. Todos deixam mais do que vestígios das personalidades, e o filme ; calcado em efeitos de um trágico baile black ; embute paralelos da tropa de periferia que, no lugar do punk-apocalíptico de Mad Max, empreende ação calcada na riqueza de limitações.
Na assustadora conjuntura futurista, em que cristãos assumiram o poder, a Antiga Ceilândia aparece com facções que operam no subterrâneo e ameaçam driblar o toque recolher da Polícia do Bem-Estar Social, com direito a barreiras de passaporte para circulação em Brasília. Porém, instaura-se a perspectiva do lançamento no espaço (siderado) de uma bomba encaminhada ao futuro: uma cápsula (com bens culturais do populacho como a Dança do jumento) ameaçaria a assepsia geral. Sem recursos, de forma habilidosa, Queirós se vale da criatividade de croquis, a serviço da fulminação, aos moldes de Independence day, de cartões-postais da elite.
Branco sai celebra, na trama, o valor da reciclagem de coisas (de próteses a nova sociedade, passando por nave espacial que reluz zinco). Vale ressaltar que o filme bota em cena assumidas lombras. Em carangas antiquadas e pátios de ferro-velho, personagens reclamam, na marra, maior responsabilidade social. ;Toma, Europa dos inferno!”, diz o agente Dimas Cravalanças (Dilmar Durães), na encenação de tiroteio imaginário. Revolta que ameaça o lixão dos dois pratos de concreto, com a dobradinha de prédios conjugados, que sacralizam corja falida e inoperante.
No discurso inflamado, em meio à grudenta homenagem a melô e canções soul (alguém esquece Charley, Flying ou mesmo a capacidade de narrar, visualmente, o som do rapper Markin?), Adirley Queirós acerta, ao deixar espaço para que o espectador toque o plano da invenção e, viaje, assimilando a proposta. Num mundo futurista, às claras, nada sombrio, Queirós emula seu despojado Blade runner, agraciado com melancolia, corpos recondicionados e superações de vida (sem ranço de chorumela). Ousadia que compensa o risco: mais do que ressignificar as dores de um passado turbulento (para os atores privados de plena locomoção), Branco sai, preto fica restaura vidas incapazes de assimilarem o compasso da estagnação. (Ricardo Daehn)
PINGO D;ÁGUA
De Taciano Valério
A produção paraibana Pingo d;Água, dirigida por Taciano Valério, é povoada por personagens em órbita. O núcleo desta construção de cinema livre é o ator Jean-Claude Bernardet (ex-crítico de cinema) em intensa variação de personagens propositadamente dispersos. Esta intenção parece ainda mais explícita nos enxertos de depoimentos reais em que o escritor francês confessa a fadiga pela análise cinematográfica e a defesa do suícidio como direito legítimo do homem. Em sequência emblemática, Bernardet expõe as magras carnes numa dança hipnótica. Tem a matéria feita de celulóide, os músculos formados por tecido cinematográfico e a pulsasão dos que se colocam inteiramente a serviço do cinema.
Se o longa documentário Sem pena (de Eugênio Puppo) era o filme da atenção à palavra falada, o curta-metragem paulista Geru notabiliza-se por duras sequências de imagens mudas. Zé Dias, um agricultor de 100 anos consegue ser um protagonista verborrágico mesmo tendo perdido a capacidade de falar. A inteção da dupla de diretores é basicamente o desejo de criação de empatia do espectador por alguém que perdeu a capacidade de emitir sons.
Numa sequência de filmes sobre quebra de laços (familiares, afetivos), o curta-metragem mineiro Vento virado aprisiona seu protagonista em um labirinto conceitual. Os passos do homem sem nome parecem formar os caminhos da mente onde o acesso a memórias é uma penosa volta a um núcleo famíliar abandonado no passado. O cineasta franco-chileno Alejandro Jodorowsky (El topo e Fando e Lis) parece ser a entidade-guia desta película feita de simbolismos e imaginação. (Yale Gontijo)
SEM PENA
A polifonia de vozes sem rosto de Sem pena ironicamente desenham a face do sistema penitenciário no Brasil. Há alguns anos, a voz em off nos documentários era considerada a voz de Deus. Aqui se ouve a voz do homens num filme determinado a ser um arcabouço do sistema judiciário brasileiro. A superlotação das carceragens, a ineficiência do Estado e a inépcia da Justiça são analisados em toda sua complexidade. As aproximações e afastamentos do documento de Puppo à série de filmes da documentarista Maria Augusta Ramos (Justiça e Juízo) são no momento o que de melhor o cinema brasileiro desenvolveu sobre a questão.
Assim como Maria Augusta, Puppo pratica um documentário formalmente rígido. Durante um pouco mais de uma hora, o espectador ouve depoimentos de presidiários e ex-presidiários e especialistas sobre o julgamentos e execução de penas no país. Não há distinção em importância entre as vozes. Não somos distraídos pelo poder da imagem daquele que fala. Há apenas as palavras de tantas vozes negligenciadas no país da terceira maior população carcerária do mundo (Yale Gontijo)
BRASIL S/A
De Marcelo Pedroso
Entre os ares de Stanley Kubrick e pretensão à la Lars von Trier, o diretor Marcelo Pedroso sai-se mesmo um filhote de Rogério Sganzerla. À frente da ficção Brasil S/A, o cineasta mais do que dirige, na verdade, rege uma sinfonia abstrata e crítica, qualificada para dar margem a 10 mil interpretações. Ele dispensa os diálogos, para a fluidez de uma narrativa plasticamente impactante (vista em cenas como a dos fogos de artifício), mas que carece de maior encadeamento lógico.
Tão danosa quanto a nitroglicrina trasportada pelos braçais de O salário do medo (clássico de 1953), uma nova realidade mecanizada opera no canavial em que os trabalhadores são incapazes de se desfazer do cíclico condicionamento à coreografia do corte da cana, mesmo que inexista facão. Numa cena síntese, em roçado de cana, estão contempladas todas as cores da bandeira verde-amarela.
A fita pernambucana fala de inoperância, embate entre o concreto e a natureza (sem refúgio, nem lugar seguro para os marginalizados) e prega a liquefação da dita sociedade perfeita (com efeitos visuais menos luxuosos dos de Nosso lar).
Num longa de estandartes e de enunciados mirrados ou pueris (em que gritam aos contrastes sociais e o ruir de um castelo onde negros assumem, com pó branco, ares aristocráticos), há o refrão de imagem que imprime uma bandeira conceitual do Brasil, em que está recortado o emblema da ordem e do progresso. A sinfonia visual avança ; nos contrastes do petróleo que jorra e o desfile de carros blindados que segregam os pouco asseados lavadores de para-brisas, no sinal ;, tudo numa montagem segmentada que reforça o caráter de alegoria do mesmo diretor do cultuado Pacific.
Escoltado como personalidade (em trecho que remete a Os eleitos, filme oitentista também citado no longa), o maquinário agrícola protagoniza bastante da bela fotografia de Ivo Lopes, no filme que dialoga com a solidão e o silêncio de Wall-E. Quando arrisca no sarcasmo, Pedroso até alça voo, em passagens bem humoradas como a do aplicativo cegonha drive (para contornar engarrafamentos) e o uso jocoso de The sounds of silence para representar o nocivo congraçamento individual em templo religioso. Colegial e frouxa, a desordenada síntese de Brasil S/A pouco convence. (Ricardo Daehn)
Curtas-metragens
BASHAR
De Diogo Faggiano
A piada nos minutos iniciais quebra a expectativa do público que esperava ver explosões e sangue no filme. A ironia do diálogo da primeira cena é a base da narrativa construída pelo diretor. O cineasta buscou através de um compilado de gravações ; algumas tiradas do YouTube ; mostrar as divergências entre as informações noticiadas pela mídia e daqueles que vivem propriamente o conflito. O mérito do curta é a montagem que busca causar reflexões sobre a veracidade e posicionamento da mídia convencional mais do que causar comoção entre o embate: inocente versus culpados (Paula Bittar)
LOJA DE RÉPTEIS
De Pedro Severien
A fotografia pesada e o tempo pausado da narrativa dão o clima tenso do curta. O jacaré que se arrasta no chão da casa traz doses de horror. O clímax do filme parece ser a mordida na personagem principal, entretanto o animal é apenas pano de fundo para discussão existencial proposta pelo roteiro. No entanto, as poucas falas não ajudam a ver essa reflexão, tampouco o jogo de cena. A produção foi baseada em um conto do diretor Pedro Severien. Talvez as metáforas que esse formato permita não tenham se encaixado tão bem na tela. Diálogos metafóricos demais deixaram as cenas desconexas e confusas (Paula Bittar)
SEM CORAÇÃO
De Nara Normande e Tião
A natureza também se revelou nos curtas apresentados na segunda noite de competição do festival. Sem coração estarreceu os amantes do bom cinema, com trama simples e poética. Objeto de uso comum a uma gama de meninos, a personagem título tem redenção e conquista o amor próprio, ao despertar o amor num jovem forasteiro de deslumbrante cenário alagoano, em que pesam fluidos e água (ou ausência dela) como elemento erótico. Cinema com crianças perfeito para encantar adultos. (Ricardo Daehn)
CRÔNICAS DE UMA CIDADE INVENTADA
De Luísa Caetano
Criatividade não faltou a atento à fabulação de personagens e anônimos locais. Uma ponte entre realidade e ficção, cimentada por fantasias, risos e longos (até demais) e questionamentos sociais. (Ricardo Daehn)