Ricardo Daehn
postado em 17/09/2017 06:00
Um close genital despontava na telona do Cine Brasília, há 26 anos, quando a cineasta Júlia Murat, hoje com 37 anos, teve o rosto tampado pela mãe, a também premiada diretora de cinema Lúcia Murat. ;Tenho com o Festival de Brasília essa coisa amorosa de ver um filme do Júlio Bressane, com nove anos de idade;, observa, aos risos, Júlia, que neste ano trará dois títulos para o tradicional evento: em competição, Pendular e, numa mostra paralela, Operações de garantia da lei e da ordem.
Pendular, em torno da construção de uma relação entre dois personagens (identificados apenas por ;ele; e ;ela;), fala de espaços divididos, entre homens e mulheres, com relevância muito contemporânea. ;Uma linha é traçada assim que começa o filme. Ele é escultor e lida com obras gigantescas, precisando sempre de mais espaço. Ela é bailarina, com um trabalho mais detido no corpo. Ele pede mais, sempre na base da negociação. Mas, aos poucos, ele começa a ocupar todos os espaços (risos);, adianta Júlia Murat.
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No fundo, a diretora conta que, com o filme (premiado na mostra Panorama do Festival de Berlim) mostra que o equilíbrio não se define por uma linha reta. ;Não se trata de uma divisão em 50% para cada. Um tem mais necessidades do que o outro. É preciso adequar as diferenças;, avalia a diretora.
No filme viabilizado com R$ 2 milhões, Júlia considera que não estende modelo ou proposta do recente Como nossos pais (;que fala do feminismo hoje;). ;No caso do meu filme, o feminismo está em não discutir isso a partir de gêneros. O que ela (a protagonista) representa vem da escolha pelo seu empoderamento;, ressalva.
Pendular foi criado com roteiro coescrito por Matias Mariani, marido de Júlia. E então, a vida imitaria a arte? ;Sim. E a arte imita a vida;, completa Murat. ;O roteiro foi um jogo em que acrescentamos coisas, juntos, nos dois personagens;, detalha.
Política
A política, tão presente na capital, se infiltra, naturalmente, no cerne de Pendular. ;Sou uma pessoa muito privilegiada: nunca sofri muito por ser mulher, por exemplo. Acabo tendo um olhar nem tão conectado com o que seria um ;olhar feminino;. Ela, a personagem, é forte, e tem a ver com eu ser uma mulher. Trato ela como uma pessoa com toda a complexidade, sem tentar alocar em nenhum deles (tanto nele quanto nela) questões de gênero;, reflete Júlia Murat. Claro que existe embate, no decorrer do longa; mas a diretora esclarece que ;o sofrimento está em pauta também;.
Pendular examina os passos de uma dupla que está indo morar junta, num moderno casamento. ;A linha divisória no filme é totalmente simbólica. O longa fala muito sobre um casal de artistas, com as demandas que têm, além das expectativas e de lidarem com frustrações. Por exemplo, o homem quer ter um filho, mas ela não quer. São conflitos nesta linha;, reforça a diretora.
A beleza do corpo
Um senso de igualdade brota da exposição dos corpos. Explica-se: Pendular é recomendado para maiores de 16 anos, pelas cenas de intimidade entre o casal. ;As cenas de sexo do meu filme são sempre comentadas nos debates. Elas chamam a atenção, mas tomo o cuidado de tratar do sexo como algo naturalizado na nossa vida. É algo importante numa relação amorosa;, observa Júlia Murat. Corpos bonitos em cena (como ela diz, em torno dos atores Rodrigo Bolzan e Raquel Karro) criam a sensação de transa entre os personagens. ;Mas, sem erotizar isso;, ressalva.
Em meio ao exame de tanta arte, com simbologia em Pendular, composto por uma bailarina e um escultor fica difícil não se especular, num Brasil tão periclitante, sobre o poder de transformação da arte. ;Acredito que a arte seja uma forma de comunicação muito forte. Não sei dizer da capacidade política dela, hoje em dia. Acho, porém, que, quanto mais sincero o material, as obras, mais sinceramente o conteúdo tocará as pessoas. O artista deve se colocar, na integridade;, sublinha a diretora de Pendular.
Entre tantos ideais, Júlia Murat é só elogios para o festival de Brasília. ;A competição está meio a meio, entre homens e mulheres. Ele é o festival político do Brasil, além de ser o mais antigo e que abrigou movimentos políticos importantes. Agora, com um filme de cada região, prova seguir critérios de seleção adequados ao seu histórico;, completa.
No calor da hora
Poderes paralelos e oficiais se encontram no documentário Operações de garantia da lei e da ordem, assinado por Júlia Murat, e que integra a mostra paralela do festival batizada de Terra em transe. A sessão será às 15h30 (em caráter gratuito), em 23 de setembro, no Cine Brasília. ;Começamos a pensar no filme em 2013, com as manifestações sociais intensificadas. Particularmente, me surpreendia muito, ao observar a forma como a mídia tratava do assunto. Havia a mídia ninja surgida, ao mesmo tempo em que os coletivos foram sendo criados. Fiquei interessada pelos discursos discrepantes;, relembra a diretora. A percepção dos desdobramentos e das influências da própria mídia em relação aos acontecimentos trouxeram o recorte para o longa, com filmagens estendidas até julho de 2014. Um estudo do processo de criminalização das manifestações e a existência de uma instrução normativa, assinada pela presidente Dilma Rousseff, em 2013, e que organiza as Forças Armadas ; criando determinadas regras na interferência nas situações consideradas fora da lei e da ordem ; nutriram a diretora. ;Adotei o tom crítico, justamente por retratar perigos da isenção. Mostro um filme opinativo e analítico, sem ser panfletário, e todo feito com material de arquivo;, completa.
O curta da noite
Inocentes
De Douglas Soares (2017, 18min, RJ, 16 anos). Um percurso voyeurístico na obra homoerótica do fotógrafo Alair Gomes, morto em 1992.
Mostra competitiva
Hoje, às 21h30, no Cine Brasília (106/107 Sul, com o curta Inocentes, de Douglas Soares (2017, 18 min, RJ, 16 anos) e o longa Pendular, de Júlia Murat (2017, 108 min, RJ, 16 anos). Ingressos (R$ 12 e R$ 6, a meia) à venda, com duas horas de antecedência.