Isabella de Andrade - Especial para o Correio
postado em 19/09/2017 07:00
O filme Construindo pontes não distingue a política da vida. Impulsionada pela história autoritária do país e pelas turbulências políticas do presente, a cineasta Heloísa Passos decidiu contar nas telas parte da história de sua própria família, mais precisamente, de seu pai. Com produção intimista, Heloísa cria uma linha do tempo para lembrar o passado e alertar sobre o presente. Entre fotografias, projeções, conversas entre pai e filha, vontades atuais e muita memória, a produção mostra o conflito de duas gerações, a impossibilidade e a possibilidade de se relacionar com alguém que tem um ponto de vista diferente do seu. O filme faz parte da Mostra Competitiva do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro e será exibido hoje no Cine Brasília.
;Quando uma filha resolve fazer um filme com o pai, e o pai está disponível para fazer o filme, de alguma forma estamos falando de afeto e dificuldade de relacionamento;, destaca Heloísa, que se encontra na frente e por trás das câmeras. A diretora lembra que a obra constrói uma narrativa onde a explosão acontece não somente no Rio Paraná, mas também na casa de seu pai.
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A lembrança se refere à explosão de 1982, que proporcionou a mudança definitiva no curso do rio para construir a usina hidrelétrica de Itaipu, maior do mundo. ;A criação da usina é um ponto de partida para pensarmos quanto de destruição é necessária para construir algo;, destaca.
Seu filme de estreia em longa-metragem coloca em foco a relação com o pai, Álvaro, que prosperou profissionalmente durante a ditadura militar. As posições, ideias e vontades entre pai e filha se tornaram cada vez mais antagônicas com o avanço do tempo e a conturbada situação política do Brasil.
A viagem ao passado é construída através da memória guardada pela própria família. O tema político, entrelaçado por relações pessoais, é uma forte característica nas produções do festival. Histórias reais se misturam à ficção para construir enredos de forte apelo emocional, social e político.
Seu pai, Álvaro, foi um engenheiro que teve seu tempo de glória no auge da ditadura militar no Brasil. Ele construiu estradas e pontes no mesmo período da construção da maior Usina hidrelétrica do mundo, Itaipu. ;Ontem e hoje, o Brasil segue num mesmo pensamento: ;Nada pode parar o progresso;. A narrativa do filme foi construída com a nossa história: a minha, a do meu pai e a do nosso país;, lembra a cineasta.
Heloísa não queria uma equipe de filmagens na casa do pai e, por isso, decidiu se preparar sozinha. Ela montou um set com duas câmeras em um apartamento no qual estava morando em Curitiba, posicionou o projeto de slide, projeto super-8, estudou a luz e enquadramento para poder filmar na casa dele sozinha.
;Mesmo ensaiando posições de câmeras, você tem que estar pronta para os imprevistos. Os encontros com meu pai se dividem em dois momentos: a casa dele e a viagem que fizemos juntos. A minha experiência na ficção me deu segurança para viajar sozinha com meu pai, filmando com duas câmeras;, conta a diretora.
No filme, seus elementos preferidos da fotografia são os instantes inesperados da vida, o tempo do cinema filmando a vida dos próprios participantes. Heloisa é integrante da Academia de Artes de Hollywood e codiretora de fotografia do longa-metragem Lixo extraordinário (2010). Na produção atual, ela busca falar também da aceitação entre aqueles que defendem pensamentos que divergem. Uma de suas utopias é a de que o filme provoque o diálogo entre pessoas que se amam e pensam de maneira diferente.
Construindo pontes
De Heloísa Passos. (2017, 72min, PR, documentário, classificação indicativa livre). Com Álvaro Passos e Heloísa Passos.
Duas perguntas / Heloísa Passos
Qual foi o ponto de partida para iniciar a produção do filme e o que a motivou a adentrar no tema político e pessoal?
Construindo pontes surgiu de um presente que ganhei, uma coleção de rolinhos super-8 com imagens das ;Sete Quedas;, cachoeiras exuberantes, localizadas na fronteira do Brasil com o Paraguai. Essas cachoeiras despareceram no inicio dos anos 80, esse lugar paradisíaco foi inundado para a construção da maior usina hidrelétrica do mundo. A construção da usina, realizada no auge do regime militar brasileiro, me despertou recordações de um passado imerso em um autoritarismo político e econômico. Tudo o que a gente diz tem ressonância e aquilo que não dizemos tem um eco de um jeito ou de outro, político. O político pode ser pessoal e adentrar no privado é politico. A minha motivação parte das minhas inquietações.
Como é trabalhar e criar relações em uma obra com um período político anterior que se entrelaça com a instabilidade política na atualidade?
Brasil, um país com passado autoritário e, 30 anos depois do fim da ditadura, novamente temos o nosso processo democrático sob risco. O que estamos vivendo é muito grave, não estamos participando das decisões do futuro deste país. Um governo ilegítimo tomando decisões arbitrárias, semana passada na China, o governo Temer ofereceu mais de 50 empresas públicas para o Brics. Eles podem dizimar o patrimônio nacional através de um programa irrestrito de privatizações. O filme é conduzido pelas conversas que traço com o meu pai nos dias de hoje. Em busca de uma relação possível com ele, proponho idas ao passado através de projeções de fotos e filmes. Em jantares, na conversa quotidiana, entrelaçamos mundos. Mas o presente mostra suas garras: na televisão, o único tema é a perturbadora situação política do meu país.