Festival de Brasilia do Cinema Brasileiro

Ney Matogrosso fala sobre filme que retrata seus 40 anos de carreira

Ricardo Daehn
postado em 22/09/2012 08:00
"O filme tem um componente muito artístico: não é um documentário sobre gente falando de mim. Só minha mãe comparece e fala do meu nascimento ; de como eu era bem pequeninho, magrinho e pesava um quilo e meio", conta Ney Matogrosso, em torno do filme Olho nu, que concentra 40 anos de um artista em eterna exposição. Fascinação, diante do processo de rearranjo de som e imagens, foi o sentimento que brotou do espectador privilegiado que já viu sua história na tela por várias exibições prévias do filme, recém-completado, e que chega à corrida por troféus Candango.

Engana-se, porém, quem acredita em componente de vaidade. "O filme não me serviu de análise. Tive um envolvimento muito técnico, até pela minha objetividade. Sempre falei muito a verdade, daí as pessoas ficarem perturbadas. Isso de ficar exposto sempre foi um critério na minha vida", avalia, aos 71 anos. "Mais do que um pavão misterioso, Ney, depois de voar muito, aprendeu a se resguardar. Ele é um super-vivente, que contraria as leis, e segue espantando pela inquietação e dignidade inabalável", confirma o diretor de Olho nu Joel Pizzini.

Ao menos sete profissionais lidaram com a ordenação das 500 horas de material de arquivo, 400 das quais tratadas pelo Canal Brasil, depois de saídas de acervo particular do cantor. Anteiror aos filmes em Super-8 (do fotógrafo Luiz Fernando Borges) de shows dos anos de 1970, ficou um hiato na fita: "Nossa maior frustração foi não obter imagens da TV Brasilia do programa Dimensão, onde o Ney começou a cantar com um grupo de universitários. São as primeiras imagens dele como cantor, mas faltou restauração", conta Pizzini. Imagens domésticas de Ney, em festas, com a presença amigos como Cazuza e de shows no exterior foram somadas ao garimpar de sequências inéditas, saídas de emissoras como Globo, TV Brasil, Cultura e Bandeirantes. "Descobertas e cedidas por Vladimir Carvalho, há cenas raras da invasão da UnB, no período da ditadura", conta Pizzini. "Isso fez parte da minha vida, eu estava lá e vi", reitera o múltiplo Ney.

Falando através do tempo, nas infindas imagens de arquivo, Ney impressionou Pizzini pela coerência. "Me dei conta que, em sentido figurado, ele só deu uma entrevista, na vida inteira, reforçando o ponto de vista crítico dele: da moral aos desmandos da política, passando pela miséria humana e pelos rumos do planeta. Tanto quanto o conteúdo, importaram os timbres, os gestos, a postura corporal e a vibração da voz. Da montagem, ordenada pela lógica dos sentidos, brotou um filme audacioso, não sobre o Ney, mas com ele. Lutamos pela síntese, adequando discurso e música numa só partitura", diz. Da fuga de casa à exaltada subversão cênica, nem tudo reclamou glorificação. "Percebo, atualmente, até uma certa falta de interlocução dele, pela postura crítica que teve dentro da indústria musical. Ele não pratica o bom-mocismo e essa escolha tem preço", comenta o diretor. Sem patrocínio, são as bilheterias de shows que garantem a independência do artista que teve a proposta da fita rejeitada em vários editais.

Multiplicidade histórica
Revolver num enigma ; "em forma de autorretrato no qual o protagonista se confunde e atravesa fases marcantes da história da MPB e ciclos como a bossa nova, o tropicalismo, a música clássica, o rock e a era do rádio" ;, sem perder traços de autoria em cinema, foi dos grandes exercícios para o diretor. "Sob a constante da metamorfose, sem filtros, nos espelhamos na fase transgressora demarcada pelo Homem de Neanderthal, a mais radical fase dele. Fugimos do viés nostálgico, que é tudo que o personagem, sempre reinventado, mais refuta", avalia. A verve dramática do homem que queria ser (e é) ator, salta na tela, como numa performance feita em Bela Vista (MS), cidade natal.

Depois de quatro anos de esforços pautados por sugestões e questionamentos do próprio Ney, Pizzini detecta uma das grandes revelacões de Olho nu: a da incapacidade de Ney na lida com improvisos. "Ele é ultra-disciplinado e isto pode ser atribuído à influência do pai, que era militar. Se durante um show, por exemplo, um músico errar uma nota sequer, ao invés de artimanhas pra disfarcar, Ney pede pra banda parar e recomecar do zero", conta. Para quem se assusta com rompantes como esse, o artista retribui com a outra faceta da moeda, no que entrega Pizzini: "Ele é um corpo que canta, pensa, sonha, arrisca e não se conforma com nada. Desencantado com a política tradicional, segue apostando na micropolítica, investindo tudo o que ganha numa reserva ambiental, apoiando causas sociais (como a luta contra a hanseníase) e projetando novos cantores, compositores e cineastas". Inclassificável, de fato.

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