Glauber Rocha

Cineasta baiano conversa em entrevista imaginária exclusiva com o Correio

No dia em que completaria 74 anos, abrimos para uma conversa imaginária com Glauber, baseada nas muitas entrevistas que concedeu om a sua verve torrencial, profética, polêmica e provocadora

Severino Francisco
postado em 14/03/2013 06:00
Glauber Rocha na redação do Correio Braziliense em setembro de 1979
Deliro, logo existo. Esse poderia ser o lema de Glauber Rocha (14/3/39-22/8/81), o cineasta baiano reverenciado pelos maiores mestres do cinema do século 20. Gênio, louco, lúcido, esquerdista, direitista, anjo, demônio: são algumas das imagens contraditórias coladas ao nome de Glauber. Ele se divertia com a confusão conceitual. Hoje, na passagem do seu aniversário, abrimos espaço para uma conversa imaginária com Glauber, baseada nas muitas entrevistas que concedeu com a sua verve torrencial, profética, polêmica e provocadora.

Afinal, quem é Glauber Rocha?

Sou um camponês de Vitória da Conquista (BA), que enlouqueceu na infância vendo filmes de caubói produzidos em Hollywood. Por isso, no meu filme Antônio das Mortes, o cangaceiro protagonista deu mais tiros do que Garry Copper, John Wayne, Randolph Scott e Errol Flynn juntos.

Qual foi o seu primeiro ato de rebelião contra o colonialismo cultural?

Quando eu tinha 5 anos, a professora contou aquela lenga-lenga de quem descobriu o Brasil foi Pedro Álvares Cabral. Levantei o dedo e discordei: ;Mas, professora, naquela época já existiam os índios por aqui;. Ela ficou brava e me expulsou. Eu disse para a minha mãe: ;Não quero mais ir à escola, vou estudar em casa, pois aquela professora é uma idiota;.

O que é a arte?

A arte é um engenho em qualquer setor, todo mundo é artista porque a arte é fazer alguma coisa um pouco além do exato, é criar com a mão e a imaginação, usando a técnica. Mas um cozinheiro que faz uma comida gostosa é tão artista quanto o Chico Buarque, que faz sambas.

De onde tirou a ideia de apoiar a abertura do presidente Geisel e proclamar Golbery gênio da raça, que provocou tanta polêmica e lhe deu a fama de louco e traidor?

Jango me deu a dica , mas não foi o único. Antes disso, em 1971, em Roma, Miguel Arraes disse-me mais ou menos o seguinte: "Olha, no Brasil, a partir de 1974, vai haver um processo de abertura, porque o presidente vai ser o general Ernesto Geisel, presidente da Petrobras. Além disso, naquela época passei um ano em Cuba e fiz vários estudos sobre o Brasil. Eu queria que Golbery e Darcy, os dois gênios da raça, se juntassem. Eles são a cara e a coroa do mesmo país. Faltava ao Darcy a visão militar e ao Golbery a visão antropológica. A história mostrou que eu estava certo.

Glauber Rocha e o cineasta Roberto Rossellini

Nos dias de hoje parece que houve decadência no campo das artes. O que é preciso fazer para que haja uma renovação artística no Brasil?

O mistério artístico é, justamente, o grande fluido que ilumina a humanidade. É impossível fabricar um Van Gogh por decreto, mas você deverá ter uma Escola de Belas Artes que ofereça a possibilidade de estudar a pintura. Se de duas centenas de estudantes nasce um Van Gogh a cada dez anos é uma maravilha, porque um Van Gogh, um Gauguin, um Pablo Picasso, um Ezra Pound, um Vieira da Silva iluminam o mundo.

Qual o caminho da tevê brasileira?

O futuro da tevê vai ser o jornalismo e será a partir daí que a teve brasileira vai se desenvolver culturalmente.

Jornalismo tem a ver com literatura ou com a objetividade absoluta?

O jornalismo é uma verdadeira literatura moderna, mas o jornalista escreve se reprimindo, literalmente, tem medo de soltar a veia literária porque há as convenções do jornalismo. Deveria ser o contrário. O jornalismo é a única literatura militante.

Quem os jornalistas deveriam ler para escrever melhor?

Ler Eça de Queiroz significou realmente uma experiência psicanalítica e cultural muito profunda. Porque, inclusive, cheguei à conclusão de que quem não lê o Eça não pode escrever em português.

A TV Globo não é também elogiada por sua qualidade técnica nas novelas?

A TV Globo é soporífera, uma espuma flutuante do povo brasileiro. Faz dormir como um detergente audiovisual, vende publicidade e besteira por meio dos grandes atores ; hoje todos palhaços. Isso é um mal de um país que não teve Shakespeare, entende, não tem cultural teatral. Então, os atores todos ficam vendendo anúncio. Quer dizer, é uma loucura completa.

Comenta-se que você usou drogas na parte final de sua vida. A droga estimula a criatividade?

Ácido e fumo não dão luz a cego. A viagem lisérgica é superfluidade química.

Você ganhou muito dinheiro com seus filmes?

Não fui rico, mas fui explorado. Também nunca fiz questão nenhuma de ser rico. Acúmulo de capital dá câncer, sabe?

Como vê a relação dos brasileiros com o Brasil?

A língua está se dispersando. O bombardeiro linguístico dentro do Brasil é terrível. As publicidades se fazem em inglês, o pessoal canta em inglês, todo mundo está escrevendo em inglês, querendo ir para os Estados Unidos.

Nelson Rodrigues diz que o que atrapalha o Brasil são os brasileiros;

Os brasileiros detestam o Brasil. O Pelé já se picou, e se picam todos os brasileiros analfabetos, que têm na cabeça uma bola de futebol cheia de ar. Você veja o seguinte: 100 milhões de pessoas com a bola de futebol número cinco na cabeça cheia de ar, entendeu. Dá um furão, ali não tem nada. Fica o Pelé chutando a cabeça de todo mundo. Quer dizer, o Brasil está realmente por fora.

Cena do filme Dragão da maldade, de Glauber Rocha

Você não se acha meio pretensioso?

A arte tem de ter pretensão. Artista modesto não é artista. O artista deve ser louco e ter ambição. A criação deve ser livre.

Sua visão do Brasil não é um tanto xenófoba?

Eu sou um cidadão do mundo. Morei na França, na Itália, na África e em Cuba. Não adianta voar meio mundo e ficar no lugar com ares e costumes da terra natal. Para nós, o tropicalismo é o nosso amor por nosso país sem ter a vergonha de dizer que ele é subdesenvolvido, bárbaro, corrompido, assim é que se faz, com todas as máscaras no chão, um verdadeiro diálogo com a América Latina.

Os críticos paulistas questionaram a exploração do sexo e os estereótipos femininos na literatura de Jorge Amado. Eles não têm razão?

Enquanto os críticos discutem o sexo das artes, Jorge Amado penetra em milhares de leitores em todo o mundo com seu falo épico, lírico e demais definições de nosso decantado tempero cultural. Jorge Amado superou Engels Marx, Freud, Sartre e o materialismo dialético.

A sua visão sobre o Brasil não é ufanista?

Somos uma nação sem gravata. Ópera no Brasil é a macumba. Estou apenas falando a linguagem do otimismo. São os pessimistas que me chamam de louco. Aliás, o pessimismo é a filosofia dos mortos prematuros, a verdadeira origem filosófica do câncer.

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