Jornal Correio Braziliense

Jovem Guarda

A explosão do iê-iê-iê brasileiro incomodou a turma da bossa nova e da MPB

Os tropicalistas, contudo, trataram de reconhecer o talento dos colegas roqueiros

O recente imbróglio envolvendo Roberto Carlos e Caetano Veloso, dois dos principais porta-vozes do movimento Procure Saber, remontou a um tempo em que a música popular brasileira era divida em ;grupinhos;. A turma zona-sul da bossa nova, por exemplo, não se misturava com os roqueiros cabeludos da Tijuca. Quando a nascente MPB fervilhou nos festivais da canção e passou a disputar espaço com a Jovem Guarda nas emissoras de tevê, em meados dos anos 1960, sobraram provocações de ambos os lados.

Os antenados tropicalistas, entretanto, já percebiam naquela sonoridade um quê de inovação e se utilizaram desses artefatos na hora de construírem seu som. Os anos provaram que todos estavam certos: a saudável promiscuidade musical fez do Brasil uma referência mundial no assunto.

Nascida no fim da década de 1950, a bossa nova acompanhou de soslaio a explosão da Jovem Guarda. Apesar de ambas serem populares, era impossível competir: o rock falava mais alto e com mais força à juventude. Atacada por todos os lados, a turma do iê-iê-iê se irritou. Termos pejorativos usados contra eles por DJs e críticos fizeram Erasmo Carlos esbravejar em uma entrevista. ;Em primeiro lugar, se a bossa nova continuar esnobe e tão afastada do povo, vai pifar. Eles são sistematicamente contra nós, mas deviam era atiçar fogo numa panelinha que já está esfriando. Como é que têm coragem de nos acusar de cantar versões e músicas estrangeiras, se eles enfiaram o jazz na sua musiquinha nacional?;

Até Wanderléa entrou na briga. A musa da Jovem Guarda, em artigo para a revista Intervalo, mostrou que não era tão ;ternurinha; assim, mas uma artista cheia de personalidade. ;Os jovens têm energia a despender. Como querem que a gaste? Talvez, como antigamente ; voltando de noitadas alegres e atirando tijolos em vidraças para se obrigarem a correr (;) Nós gastamos nossa energia, hoje, de modo muito mais racional e humano, sem destruir coisa alguma: cantamos e dançamos.; O trecho está no livro Jovem Guarda em ritmo de aventura, de Marcelo Fróes.

Em meados da década de 1960, a MPB tradicionalista tomava forma, e, com ela, acirrava-se a disputa. A incendiária Elis Regina (que havia estreado em disco cantando baladinhas roqueiras, vejam só) era uma das críticas mais ferrenhas: ;De volta ao Brasil, eu esperava encontrar o samba mais forte do que nunca. O que vi foi essa submúsica, essa barulheira que chamam de iê-iê-iê, arrastando milhares de adolescentes que começam a se interessar pela linguagem musical e são assim desencaminhados. Esse tal de iê-iê-iê é uma droga: deforma a mente da juventude. Veja as músicas que eles cantam: a maioria tem pouquíssimas notas e isso as torna fáceis de cantar e de guardar. As letras não contêm qualquer mensagem: falam de baile, palavras bonitinhas para o ouvido, coisa fúteis. Qualquer pessoa que se disponha pode fazer música assim, comentando a última briguinha com o namorado. Por que manter essa aberração?;, disse ela em entrevista.

Passeata contra a guitarra


Em 1967, ao lado de nomes como Jair Rodrigues, Edu Lobo, Geraldo Vandré e até Gilberto Gil, Elis marchou em São Paulo contra a guitarra elétrica. Pouco depois, a MPB iria aderir à sonoridade do instrumento símbolo do rock. ;Houve um dia, bem no início da guerra babaca entre a linha dura da MPB e a Jovem Guarda, em que Gilberto Gil me disse que reconhecia os méritos de nosso movimento e de seu efeito avassalador na mudança de comportamento do jovens;, conta Erasmo na autobiografia Minha fama de mau. ;Retribuí dizendo que a Tropicália viera para dar um passo além do nosso, com letras mais inteligentes e gente mais cabeluda e extravagante do que nós. Terminamos a conversa abraçados, desejando sucesso um ao outro.;
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Para Nelson Motta, no livro Noites Tropicais, a rivalidade MPB versus Jovem Guarda era tudo o que a TV Record poderia querer. A emissora musical paulistana abrigava o principal festival da época e os mais importantes programas dos dois gêneros. ;Aquilo gerava polêmica, debates e paixões, num tempo em que música popular era discutida nas ruas de São Paulo como se fosse futebol;, relembra o jornalista.

No mesmo festival que consagrou a MPB de Edu Lobo (Ponteio) e Chico Buarque (Roda viva) e deflagrou o tropicalismo de Caetano Veloso (Alegria, alegria) e Gilberto Gil (Domingo no parque), em 1967, o ;roqueiro; Roberto Carlos classificaria como intérprete, sob vaias, o samba Maria, carnaval e cinzas. O Rei adentrara, enfim, o rol dos grandes.
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;Hoje, quando você vê um encontro entre Roberto e Caetano na tevê cantando bossa nova, a história está sendo reescrita;, opina a historiadora Eleonora Zicari. Da mesma forma, quando Roberto, Caetano, Erasmo, Gil, Chico e companhia se juntam em torno do Procure Saber, a trajetória dos artistas ganham novo capítulo. Só que, neste caso, o descompasso no discurso do grupo e a possível ruptura entre Caetano e Roberto via jornal soam bem menos gloriosos do que as discussões estéticas que pautaram a MPB de outrora.

Eles também entraram na onda do iê-iê-iê


Elis Regina

O álbum de estreia da gaúcha, Viva a brotolândia (1961), entrou com os dois pés na música jovem e abusou das versões de canções estrangeiras. Elis tinha apenas 16 anos na época. Em 1965, ela venceu o Festival da Excelsior com Arrastão e se tornou ícone da MPB.

Jorge Ben

O criador de Mas que nada gostava tanto de rock que tinha o apelido de Babulina, em alusão à música Bop-A-Lena. Ben participou de programas da Jovem Guarda, gravou disco acompanhado do The Fevers e trocou o violão acústico por um amplificado. Os puristas implicaram; ele nem se importou.

Raul Seixas

Com capa inspirada nos álbuns da época, sobretudo dos Beatles, o baiano estreou em disco com o conjunto Raulzito e os Panteras, em 1968, em que assinava a maior parte das canções. Raul é autor de Doce, doce amor, sucesso de Jerry Adriani, e produziu discos dele e também de Leno e Lilian.

Tim Maia

Também Babulina (pelo mesmo motivo de Ben), o maior soulman brasileiro era tijucano e amigo de infância de Erasmo Carlos. Com Roberto, em 1957, integrou o grupo The Sputniks. Roberto o gravaria alguns anos depois. Tim produziu disco de Eduardo Araújo.