Cercados por prédios e palácios riscados por Oscar Niemeyer, muitos dos arquitetos nascidos ou formados em Brasília desenvolveram um olhar diferente do ofício. Uma visão engendrada pela própria noção de Niemeyer sobre a cultura nacional. Uma visão que funde o trabalho, a criatividade e a identidade de um povo no desenho, por exemplo, das colunas do Palácio da Alvorada. Que mistura o horizonte e as varandas sertanejas repletas de redes onde dormem viajantes, à fachada da residência oficial do presidente da república.
A percepção de que é possível compreender e representar a história de uma nação em projetos de concreto e aço migrou e vive em toda uma geração de profissionais que se destacam no Brasil e no mundo, e carregam consigo o legado de uma cidade projetada nos moldes do Brasil (leia Palavra de especialista).
Uma desses profissionais é Paulo Henrique Paranhos. Ele chegou com a família de Pedregulho (SP), em 1970, aos 12 anos. Cursou arquitetura na Universidade de Brasília, é vencedor de vários concursos e teve diversos projetos arquitetônicos premiados, um deles, no Japão, que contou com Oscar Niemeyer como um dos jurados. Também projetou o pavilhão do Brasil na Feira Universal de Sevilha em 1992. A lista de premiações é bem mais extensa que as duas citações, e inclui vitórias e menções honrosas em vários lugares do Brasil e do mundo.
Entre outros destaques, estão, ainda, projetos para o Museu Guggenheim de Helsink, na Finlândia, e para o Museu Bauhaus em Dessau, na Alemanha. Mas, quando abre ao falar de arquitetura, parece bem instalado no planalto central. ;Alguém que chega com 12 anos e faz arquitetura aqui, tem a consciência cultural formada na cidade. Meu trabalho é reflexo de uma vivência brasiliense;, explica.
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Reconhecido na capital e em diversos locais do mundo, Paranhos fala com sobriedade da própria trajetória, e percebe uma influência forte dos trabalhos de Oscar Niemeyer nos próprios projetos e no de colegas formados na capital. Mesmo entre os mais jovens.
;À medida que amadureci, percebi que meus projetos tinham uma relação forte com Brasília. É uma influência embrionária no meu pensamento, e eu não tinha consciência da dimensão disso. Hoje, isso é muito claro. Vejo que arquitetos de outros locais pensam o uso do território, da paisagem e da expressão estética do espaço de forma diferente da nossa. Como curador em uma exposição de arquitetos brasilienses no exterior, pude ver esse fio condutor, um traço onde identificamos as influências de Lúcio Costa, Niemeyer e João Figueiras. Eu não me considero um deles. Pelo contrário. A compreensão dessa influência é um reconhecimento, uma reverência a essas pessoas, que participaram desse momento cultural milagroso;, afirma.
Autodeterminação
Nascido em Brasília, o também arquiteto Danilo Matoso Macedo se formou e fez mestrado em Belo Horizonte (MG), antes de voltar para a terra natal. Ainda assim, não conseguiu se afastar das obras de Niemeyer. Hoje, é um dos responsáveis, na Câmara dos Deputados, pela preservação dos prédios do arquiteto por Brasília. ;Ele me influencia na questão da autodeterminação da cultura brasileira como autônoma, capaz de produzir obras significativas.
Quando fomos capazes de construir Brasília, provamos para nós que somos uma cultura independente, e não uma versão atrasada de outros povos;, conta. O projeto de mestrado mostrou a Danilo, ainda, uma outra faceta de Niemeyer, com obras menos suntuosas. ;Havia os prédios da Pampulha e algumas residências. Ali, eu via um arquiteto mais próximo como profissional. Uma pessoa que tinha o meu tamanho. Eu queria aprender com a prática dele, já que tinha relação com as obras em Brasília desde a infância;, conta.
Danilo trabalha com os colegas Fabiano Sobreira e Élcio Gomes. Entre os projetos executados, o trio tem o prédio da Associação de Poupanças e Empréstimos (Poupex), no Setor Militar Urbano. Outro nome de destaque de Brasília que tem Niemeyer como uma grande referência é o arquiteto Sérgio Parada. Chegou à capital federal aos 27, já formado.
Dois anos depois, foi para o México fazer mestrado em urbanismo, em busca de soluções para problemas locais que, ele acreditava, não encontraria em universidades da Inglaterra ou dos Estados Unidos, por exemplo. Em seguida, voltou permanentemente para a capital federal. Tem no currículo uma das reformas do Aeroporto Juscelino Kubitschek, fez os projetos dos terminais aéreos de Curitiba (PR), Belém (PA), Cuiabá (MT), e foi ganhador de um projeto executado em Wuxi, na China.
Sociedade e arquitetura
Foi Sérgio Parada, também, que desenhou os Postos Comunitários de Segurança do Distrito Federal. Ele faz estudos, agora, para readequar esses espaços para outras funções públicas. ;Eu acho que o Oscar Niemeyer tem uma forte influência na minha geração. Eu não tenho uma influência quanto ao arquiteto desenhador, mas quanto ao arquiteto que contribui com o pensamento do profissional do cidadão. Penso nele como um homem que pensou na sociedade como quem pensa na arquitetura. Ele é muito rico nesse aspecto. Quando eu era estudante em Curitiba, vi uma conferência dele. Ele dizia que mais importante que a arquitetura são as pessoas. À medida que aprendo, vejo o quanto isso está correto. Mais importante que o ofício é aquilo que se pode contribuir para o mundo. Isso me influenciou muito. E Brasília é uma cidade maravilhosa. É magnífica, pensada por gênios como Niemeyer e Lúcio Costa;, destaca.
ARTIGO
Certidão da civilização brasileira
"As faculdades de arquitetura estão em constante renovação. Isso pode ser entendido como uma busca pela perfeição. Nesse tipo de busca, há uma tendência forte de a pessoa se encantar com o que é notícia fora. Niemeyer, conquanto seja conhecido fora do país, mais por suas obras que pelo fato de ele ser o arquiteto que ele é ; tem obras na França, na Itália, na Argélia, por exemplo ; é uma pessoa que dentro do nosso país recebe uma crítica acadêmica muito forte. O professor quando se projeta, tem uma crítica a ele, se coloca em uma postura de extremo rigor, e os alunos recebem essa visão crítica.
Mas, Niemeyer se destaca no mundo como um raro arquiteto, e tem uma quantidade de projetos muito responsáveis para a inauguração de Brasília. O Congresso, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário não são prédios com programas comuns. A pessoa tem que se voltar para dentro da própria cultura, sonhar, realizar, se arrepender, refazer. Esses prédios se constituem como ícones da nossa cultura, e nos dão a certidão de nascimento da civilização brasileira.
As obras de Niemeyer são carregadas de significados relacionados à cultura local. É algo que ele sabia fazer. As colunas do Alvorada, por exemplo, que já foram tão criticadas, guardam esses significados. Lembram as casas com varandas em que as pessoas deixaram o cavalo do lado de fora, e dormiam em redes na varanda. As colunas do Niemeyer são únicas. Não estou dizendo que são mais importantes que as gregas, que são o tratado de estética do ocidente. Elas mostram que, apesar do nosso breve tempo de existência, temos uma forma de expressão própria, autêntica, que contribui para a humanidade. Temos um modo de ver o mundo que nos é próprio.
Niemeyer dizia que essas colunas são cariátides libertárias. Quando os gregos invadiram a ilha de Cárie, mataram todos os homens para ficarem com as mulheres. Elas foram vítimas de toda a crueldade, mas levavam os filhos dos soldados e perpetuariam a cultura helênica. Foram simbolizadas em colunas em forma de mulheres submetidas. Niemeyer está falando dos índios, que receberam os portugueses, dos colonizadores, que tomavam as índias para si e, posteriormente, dos escravos. Ele se refere a esses três momentos emergenciais em que se decidiu que estávamos abertos à mestiçagem. A nossa identidade é mestiça e Brasília é uma celebração dessa identidade nacional. Leva-se tempo para compreender a excepcionalidade de Niemeyer e é muito difícil ignorá-lo".
Cláudio José Pinheiro Villar de Queiroz é professor de arquitetura e urbanismo na Universidade de Brasília e foi amigo pessoal de Oscar Niemeyer