Helena Mader
postado em 05/12/2012 22:03
O artista das formas ousadas e dos monumentos repletos de curvas nunca escondeu suas posições políticas. Oscar Niemeyer dedicou a vida a duas de suas grandes paixões: a arquitetura e o comunismo. De suas mãos, saíram os traçados de projetos inovadores, como os prédios monumentais de Brasília, mas também manifestos em defesa da democracia, cartas a amigos do antigo partidão e inúmeros artigos em que ele não hesitava declarar: ;Eu sou mesmo um comunista;. A sua ideologia sem disfarces era um incômodo e um motivo de constrangimento para os militares durante a ditadura. Mas o enorme prestígio internacional de Niemeyer livrou-o de prisões e de interrogatórios mais duros.
Documentos sigilosos do governo militar guardados no Arquivo Nacional comprovam que todas as atividades do arquiteto eram monitoradas e que as declarações, os projetos e as entrevistas de Oscar causavam enorme desconforto entre os integrantes da alta cúpula. O Correio teve acesso a arquivos liberados graças à Lei de Acesso à Informação que revelam a visão dos militares a respeito do arquiteto: Niemeyer era considerado um inimigo, com contato próximo aos ;escalões avançados da subversão estudantil; e dono de um perigoso discurso antiamericanista. Além das posições políticas, nem mesmo o trabalho de Oscar escapou de questionamentos e acusações. Os documentos revelam uma grave acusação que teve repercussão entre os militares da época: um coronel se empenhou em divulgar o boato de que trabalhos de Niemeyer seriam um plágio dos projetos do arquiteto suíço Le Corbusier.
Um documento do Serviço Nacional de Informações (SNI) de 1973, cujo assunto era ;Oscar Niemeyer;, esmiuça em quatro páginas os passos do arquiteto. O ofício detalha principalmente entrevistas, encontros e suas atividades. ;O presente documento de informações trata dos aspectos ideológicos das atividades de Oscar Niemeyer, não tendo sido focalizados os casos de natureza técnico-administrativa ligados a Brasília, como o plágio de Le Corbusier;, diz o documento localizado pela reportagem no Arquivo Nacional.
Plágio de Le Corbusier
A acusação dos militares de que Niemeyer teria copiado trabalhos do colega suíço é apenas mencionada no ofício, que não traz detalhes sobre o caso. Mas o Correio apurou que o trecho é referência a uma notícia propalada à época pelo coronel Miguel Pereira Manso Neto, que foi assessor do governo Médici. Segundo amigos de Niemeyer, e de acordo com o próprio arquiteto, o militar reuniu croquis e fotos para tentar provar que Oscar plagiava Le Corbusier. Ele dizia que a Igrejinha da Asa Sul seria ;uma cópia; de um templo projetado pelo suíço para a cidade indiana de Chandigarh.
Niemeyer se lembra do caso com palavras cheias de revolta. ;A indignidade atinge limites inimagináveis quando o coronel Manso Neto arranja um croqui com o qual pretende provar que copio Le Corbusier. O plano prossegue e, na prefeitura, cópias são distribuídas aos ministros e pessoas importantes;, relembra Oscar Niemeyer em seu livro de memórias Curvas do tempo. ;Só tomei conhecimento dessa indignidade muito tempo depois e, como não consegui cópia, nada foi possível fazer. A hostilidade orquestrada pelo coronel Manso Neto me revoltou. Vivíamos um clima sórdido demais.;
O arquiteto Carlos Magalhães, amigo, ex-genro e representante do escritório de Niemeyer em Brasília, diz que a acusação de plágio difundida por militares foi um dos episódios que mais o indispuseram com a ditadura. ;O coronel Manso Neto virou inimigo pessoal porque atingiu a obra do Oscar, a coisa que ele mais prezava;, conta Magalhães. ;O que existia era uma relação de mestre e aluno. Le Corbusier era uma inspiração. Mas é claro que não houve plágio, o Oscar é dono de um talento enorme, era inventivo, tinha uma cabeça muito pulsante;, comenta Magalhães.
Guerra fria
A relação do arquiteto com a ditadura oscilava entre um contato diplomático para a execução de obras de monumentos e prédios públicos até o conflito declarado, com artigos revoltados de Oscar Niemeyer contra posicionamentos do governo militar. O episódio mais conhecido de atritos entre ele e a ditadura foi a construção do Aeroporto de Brasília. O projeto de um terminal circular, desenhado pelo arquiteto, acabou recusado pelo governo. ;A solução de um aeroporto deve ser extensível;, justificou à época o diretor de Engenharia da Aeronáutica, brigadeiro Henrique Castro Neves.
A recusa ao projeto abriu uma guerra entre os militares e Oscar Niemeyer em 1967. O arquiteto, com o apoio de um grupo de colegas, recorreu à Justiça por meio de uma ação popular, em que pedia o direito de executar seu projeto. ;Um aeroporto extensível, já naquela época, era solução superada que deviam rejeitar. Circular era a solução correta. Recorri à Justiça. Apresentamos uma ação popular contra a Aeronáutica, mas perdemos. O juiz se deu ao ridículo ; que calhorda ; de nos condenar a pagar as custas do processo;, relembra Niemeyer, em seu livro de memórias.
Um ministro militar declarou à época que lugar de arquiteto comunista era em Moscou, frase que irritou Niemeyer. Depois do episódio do aeroporto, ele passou a ser perseguido de forma mais ostensiva. ;Vivíamos os tempos de Médici, governo fascista. Meus trabalhos começaram então a ser recusados e eu, ameaçado de demissão.;
As rusgas entre Niemeyer e a Aeronáutica persistiram nos anos seguintes. No Arquivo Nacional, a reportagem localizou um ofício confidencial datado de setembro de 1969, que determinava a abertura de inquérito policial militar ;para apurar, com profundidade, as atividades subversivas praticadas pelo arquiteto Oscar Niemeyer;. As posições políticas do arquiteto ;haviam sido relatadas na exposição apresentada pelo excelentíssimo senhor major brigadeiro-do-ar engenheiro Henrique de Castro Neves;. Justamente o militar que decidira vetar o aeroporto de Niemeyer dois anos antes.
A invasão da Universidade de Brasília pelos militares e a perseguição contra professores e estudantes também atingiram Oscar, que foi docente da instituição. ;Já tinha comparecido à polícia política várias vezes. E a pressão continuou. A universidade foi invadida, nossos colegas exonerados e, dela, um dia, nos demitimos, cerca de 200 professores, em protesto contra tanta brutalidade;, recorda-se o arquiteto no livro Curvas do tempo.
Em 1969, os militares abriram inquérito policial para identificar ;os responsáveis pelas agitações comuno-estudantis ocorridas na Universidade de Brasília em março de 1968;. O documento está no Arquivo Nacional. O nome de Niemeyer é citado várias vezes. O inquérito diz que ele era ;um dos influenciadores de fora para dentro da UnB; e que Oscar e outros membros da Associação dos Arquitetos de Brasília ;colaboraram, sobretudo, com a FAU (Faculdade de Arquitetura), que é órgão subversivo.;