Escrever, segundo Oscar Niemeyer, era vital. Conseguir transpor ideias para frases e palavras que a mesma sofisticação com a qual imprimia no desenho a expressão moderna de uma identidade tupiniquim foi uma obsessão que levou o arquiteto à literatura e à música. Niemeyer publicou 18 livros, nos quais refletiu sobre a própria trajetória, revisou projetos, revisitou a arquitetura, relembrou a vida pessoal e até ensaiou ficção e poesia. Em dezembro de 2010, pouco depois de completar 103 anos, estreou na música popular e compôs um samba musicado por Edu Krieger. No escritório em Copacabana, o número 13 da revista Nosso caminho, lançada em maio de 2008, ainda aguarda revisão. O volume deveria ser publicado no próximo dia 15, quando o arquiteto completaria 105 anos.
A saga de Niemeyer com a escrita começa quase ao mesmo tempo que o fascínio pelo desenho: para ele, projeto sem texto não existia, tudo precisava estar muito bem explicadinho na apresentação das plantas e dos desenhos. Em 1961, a pena foi além da prancheta na mais importante investida literária do arquiteto. Minha experiência em Brasília narra o processo de construção da capital no calor da hora, enquanto a cidade brotava do cerrado. Nos anos seguintes, viriam Minha arquitetura ; 1937-2005 e As curvas do tempo, uma mescla de reflexões e memórias que contextualizam uma obra e um país.
Publicado em 1999, Diante do nada, uma história sobre exílio e injustiça na vida do guerrilheiro Way, foi a estreia na ficção. ;O Oscar, como escritor, era um memorialista e um cronista extraordinário. O próprio professor Antônio Cândido reconheceu. Disse também que ele poderia colocar o nome dele em qualquer manifesto pela justiça, ele sempre se bateu pelos oprimidos e injustiçados. Acho que deve ser dada uma atenção especial às crônicas e aos livros de memórias;, diz Cecília Scharlach, curadora da exposição Niemeyer 90 anos, que circulou pela América Latina e Europa entre 1997 e 2006. Com a esposa, Vera, o arquiteto ainda planejava editar um livro sobre artes e centros culturais.
Antes de começar a projetar os prédios e palácios de Brasília, o arquiteto já se embrenhara pelo mundo da edição. Em 1955, fundou a revista Módulo, que ficou suspensa entre 1965 e 1975 por causa da ditadura militar. Comunista, Niemeyer não hesitava em publicar textos de filósofos marxistas e opiniões de esquerda.
Quando voltou do autoexílio em Paris, em 1974, retomou a ideia de editar a Módulo. ;Oscar sempre foi um apaixonado por edição. Quando estava na Europa e se aventou a possibilidade de voltar ao Brasil, a primeira coisa que ele falou foi que queria voltar a fazer a Módulo;, conta Marcus Lontra, que ajudou o arquiteto a editar a revista nos anos 1970. ;Oscar sempre teve isso, acho que é uma coisa geracional: a coisa mais importante que o ser humano tem na vida é escrever. Ele sempre achou que escrever era a dádiva e sempre procurou ter o texto muito claro. Era uma preocupação.;
Ressonância
No início, a Módulo era uma revista de arquitetura, mas aos poucos concedeu espaço a jovens artistas plásticos sob influência de Lontra, que participou da organização da exposição Geração 80, responsável por revelar nomes da pintura brasileira hoje conceituados como os mais importantes na produção nacional. ;A Módulo começou a criar um quadro de ações culturais, e nos próprios textos essa questão filosófica era muito clara. Era essa preocupação de amplitude típica de Oscar;, lembra Lontra. A revista chegou a alcançar tiragens de 30 mil exemplares e a ambição era transformá-la na grande publicação de cultura e arquitetura do Brasil, mas a experiência acabou em 1989 com o número 100 e um especial dedicado ao Memorial da América Latina. ;A revista tinha uma ressonância extraordinária porque não era exclusivamente de arquitetura, era uma revista cultural, com os projetos dele, os projetos que ele considerava importantes do Brasil e de fora, sempre tinha um enfoque político e cultural;, conta Cecília Scharlach, que editou um número inteiro sobre São Paulo.
A música sempre esteve presente na vida de Niemeyer ; basta lembrar que Água de beber, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, nasceu no Catetinho em 1958 enquanto a dupla fazia uma visita ao imenso canteiro de obras que era Brasília ;, mas há dois anos ele resolveu arriscar na composição e fez o sambinha Tranquilo com a vida. Na letra, o arquiteto revela duas de suas paixões: o desejo de uma vida justa para todos e as mulheres. ;Quero ser um mulato que sabe a verdade/E que ao lado dos pobres prefere ficar;, diz a música. ;Andar pela praia vou fazer toda manhã/E até moça bonita vai ter se deus quiser.;
Minha experiência em Brasília (1961)
Ainda sob o impacto das obras da capital, Niemeyer escreveu sobre o processo de construção daquela que seria sua maior obra. Publicado pela primeira vez em 1961, o livro se tornou o primeiro documento sobre a jovem capital e circulou sem problemas até a década de 1980, quando acabou esgotado depois de duas edições. Nos anos 1990, voltou a ser publicado em uma edição realizada pela Editora Bloch e apenas em 2006 a Revan incorporou a obra ao seu catálogo.
Rio ; De província a metrópole (1980)
O texto é uma espécie de carta do arquiteto endereçada ao Rio de Janeiro e destinada a recordar os tempos em que a capital fluminense vivia dias mais tranquilos e bucólicos, ainda distantes do tumulto natural à metrópole que já tomava forma na década de 1980, quando o livro foi escrito. No texto, Niemeyer reflete como a arquitetura pode ajudar ou atrapalhar o crescimento de uma grande cidade.
As curvas do tempo (2000)
Com apresentação de Ferreira Gullar, o volume de memórias é um dos mais conhecidos da obra bibliográfica do arquiteto. Em pouco mais de 300 páginas, ele discorre sobre todos os temas que pautaram seu interesse, incluindo arte, literatura e filosofia. A nostalgia marca a escrita simples e leve e a afetividade está presente em todos os textos, especialmente naqueles em que Niemeyer recorda a infância na casa dos avós em Laranjeiras.
Minha arquitetura (2000)
É por meio de projetos que Niemeyer vai pontuando sua trajetória neste livro que retoma as principais realizações no mundo inteiro. Dos palácios brasilienses à singela igreja da Pampulha, das sedes da Editora Mondadori (Milão) ao Museu de Arte Contemporânea de Niterói, o arquiteto retoma as ideias que o guiaram e revisita mestres. Mas avisa: ;Para mim, a arquitetura não é o mais importante. Importantes são a família, os amigos e este mundo injusto que devemos modificar;.
Conversa de amigos (2002)
Arrependido por não ter trocado cartas com o engenheiro Joaquim Cardozo, seu calculista preferido, Niemeyer sugeriu ao também engenheiro Carlos Sussekind que dessem início a uma correspondência cujo conteúdo tratasse de tudo. Arquitetura e engenharia seriam os temas iniciais, mas a dupla aproveitou a afinidade e foi além. Reproduzidas no livro, as 56 cartas trocadas entre 2001 e 2002 tratam também de filosofia, história, política, literatura e outros
temas caros a Niemeyer.
Casas onde morei (2005)
A infância na casa de Laranjeiras, a fachada voltada para a rua no Leblon, os detalhes da vida nas curvas modernistas da casa de Canoas, o arquiteto faz um passeio sentimental pelas residências nas quais viveu e comenta lembranças e arquitetura dos lugares. Ao mesmo tempo, ele recupera fatos de uma época e contextualiza o tempo vivido em cada uma de suas moradias.