Marcelino Cruz dá valor a tudo que virou lixo para alguém. A renda dentro do convite de casamento, por exemplo, ganhou novo significado ao receber diversas camadas de tinta. O pedaço de couro de bode encontrado na fazenda do pai no sertão nordestino, hoje, é o rosto de mulher. A sacola de compras velha dá textura à obra na parede. As telas trazem cores vibrantes e fortes, reflexo da personalidade alegre do artista plástico. A arte deu novo sentido à vida do homem de 52 anos.
Cruz chegou a Brasília em 1980. Veio de União, cidade a 65km de Teresina, Piauí, para estudar. Sem saber ao certo qual profissão queria, prestou vestibular para diferentes cursos, como engenharia e matemática; acabou optando por administração. Trabalhou muitos anos na Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Casou-se, teve duas filhas e decidiu voltar à faculdade. Desta vez, sem dúvida alguma, escolheu artes plásticas, área que o encantava desde criança.
Em 1995, ingressou na Universidade de Brasília (UnB). Marcelino foi da primeira turma do período noturno. No curso, começou a experimentar o conceito que iria seguir como artista. ;Na UnB, pirei com as obras do Arthur Bispo Rosário, porque eram muito expressivas. Acabei estudando arte moderna, dadaísmo. Como fiz o curso de forma bem despretensiosa, não tinha dinheiro para gastar com tinta francesa. Decidi trabalhar com o que tinha. Foi assim que comecei a brincar com couro, madeira, tapete, faixas e tudo que possa vir a me inspirar;, conta.
Para criar as obras, o artista busca inspiração na arquitetura da cidade, na riqueza do cerrado e no próprio material que tira do lixo. De cortina a pano de prato, tudo pode servir para dar forma às telas. Entretanto, as faixas de propaganda encontradas nas quadras do Plano Piloto são a base da maioria dos quadros. ;Geralmente, me confundem com o cara que rasga as faixas. Acho interessante o protesto dele contra a poluição visual. Vou além de destruir a faixa; levo para casa mesmo;, revela, aos risos.
Criação
Marcelino aprendeu na faculdade a técnica que usa para transformar o tecido comum em tela para pintura. Com tinta PVA, ele fecha todos os pequenos espaços entre a trama do tecido até que pareça uma lona. O trabalho pode ser feito com qualquer tipo de pano, mesmos os mais finos. Depois, a intuição toma conta do processo. ;Tem artista que faz rascunho antes. Eu nunca elaboro uma tela. Na verdade, não sei como ela vai sair. Começo a pintar uma, outra e outra. Quando vejo, estou fazendo 50 ao mesmo tempo. Só sei distinguir os temas, mas nada pré-determinado;, explica.
O processo de criação é solitário. No ateliê, no Park Way, é impossível contar com exatidão a quantidade de telas prontas e o material para novas obras. Depois de feitas, são colocadas no quadro. Até a armação é reaproveitada do lixo. ;Tem gente que joga obra de arte fora. Já achei até chassi na rua;, comenta.
O ensino
Marcelino não deixou a profissão de administrador. Hoje, concilia o tempo no ateliê com o trabalho de gestor público no Palácio do Buriti, pela manhã, e como professor de arte no Centro de Ensino Fundamental (CEF) da 102 Norte, à tarde. O cotidiano pode parecer exaustivo, mas o cansaço é esquecido durante as horas de pintura. O que aprendeu com o lixo também é repassado aos alunos. ;Ensino que se pode fazer uma obra sem gastar nada. Até a caneta que vai para o lixo pode ser reaproveitada. Do bico sai uma tinta a óleo maravilhosa;, afirma.
O ensino é um desafio. Despertar o interesse dos alunos consite um trabalho árduo. ;A maioria das crianças não têm dinheiro para comprar material, como tinta e tela, mas nas minhas aulas isso não é desculpa para não fazer arte. Meu trabalho como artista acaba influenciando-os a terem criatividade. Para quem achava que não venderia nenhum quadro, comercializei muitos. Já fiz mais de 50 exposições. Também não acreditava que isso não iria acontecer nunca;, diz Marcelino.
Louco e gênio
Arthur Bispo Rosário era um artista plástico sergipano considerado por alguns, louco e, por outros, gênio. Construía objetos com diferentes tipos de materiais retirados do lixo e da sucata. Foi comparado ao pintor e escultor Marcel Duchamp. O francês foi o criador do termo ;ready made; ; conceito revolucionário para o mundo da arte, pois dava a possibilidade de usar outros tipos de material para as obras. A ideia era trazer objetos do cotidiano, a princípio não reconhecidos como artísticos, ao campo das artes.