O escritório no Plano Piloto estava pequeno para Julie Assêncio e Thiago Ruiz. Para resolver o problema, o casal decidiu derrubar as quatro paredes e ampliar o horizonte para além do quadrado central. De Brasília, pegaram um avião até Lisboa e desde então não sobem em um veículo motorizado. A rotina agora é ao ar livre, faça chuva ou faça sol. Eles optaram pela bicicleta para cruzar o mundo e já atravessaram 10 países europeus nos 5 mil quilômetros de pedal. Com muito chão pela frente, os brasilienses não demonstram nem um pingo de cansaço.
;Já estamos há cinco meses na estrada e ainda queremos viajar mais e mais. A gente ainda não quer voltar pra casa, não estamos preparados;, avisa a publicitária Julie ao Correio. Com os 30 anos comemorados na semana passada -- enquanto pedalava por Pazardzhik, na Bulgária --, ela pedalará ao lado do namorado até que ele se torne balzaquiano, o que ocorrerá apenas em maio. ;Queremos passar nossos aniversários na estrada;, explica, ansiosa por dobrar o número de países presentes na lista do casal.
As bicicletas carregam tudo o que necessitam para sobreviver. Barraca, saco de dormir, fogareiro, comida; Até chuveiro portátil são carregados nas bolsas fixadas ao lado da bike por subidas e descidas traçadas. ;A vontade de viajar e conhecer o mundo sempre existiu pra nós dois. Mas a gente não sabia quando nem como fazer isso. Viagens longas costumam ser caras, e não tínhamos essa grana. A bicicleta foi uma forma de facilitar nosso transporte: é um meio que tem custo de manutenção quase zero;, explica o analista de redes sobre o uso da magrela.
O esforço físico pode ser alto e cansativo, mas os dois parecem satisfeitos com o resultado no ciclismo. A ideia surgiu durante uma viagem em agosto de 2013, quando Julie e Thiago fizeram a primeira viagem de bicicleta juntos: 20 dias pelo litoral cearense. ;Voltamos por causa do trabalho e parecia que não cabíamos mais num escritório. Só queríamos saber de viajar. Em maio de 2014, a gente já estava na estrada de novo;, conta a publicitária.
A experiência na bike era pequena e se limitava às trilhas nos fins de semana pelo cerrado. Hoje, no entanto, são vistos como atletas pelas estradas. ;O condicionamento físico conseguimos durante o projeto. Nenhum dos dois era atleta. Nosso corpo está mudando muito, a gordurinha está sumindo, os músculos ficando mais definidos e estamos com mais fôlego;, destaca Julie. O veículo também os coloca mais próximo da paisagem e das pessoas com quem cruzam, visto que a velocidade é baixa. ;Paramos para ver algo interessante, sentimos os cheiros, vemos pessoas de diferentes culturas cuidando de suas casas. E todos adoram cicloturistas, ficam curiosos, oferecem ajuda;, completa Thiago.
Sem conforto
Não foram poucas as vezes que os brasilienses foram convidados para passar a noite na casa de desconhecidos. Eles viram de perto como é o interior de casas no leste europeu. Na Sérvia, Julie viveu um dos momentos mais significativos da estrada até agora. ;Pedimos para acampar no quintal de uma família e eles colocaram a gente pra dentro da casa. Deram café, bolo e nos convidaram pra jantar. Eram pessoas maravilhosas e me senti em casa. Pareciam parentes, amigos de longa data;, relembra e conta que conseguiram se comunicar mesmo sem falar o idioma uns dos outros.
Mas não é sempre que o casal consegue se aconchegar no conforto alheio. Na maioria das noites, eles dormem ao longo da estrada, na barraca. Ali cozinham macarrão, arroz, sopa, planejam o dia seguinte e descansam. ;Se tiver calor, tomamos banho. Se não, dormimos sujos mesmo. É uma rotina difícil e trabalhosa, mas tentamos fazer tudo com calma, no nosso tempo;, conta Thiago, aliviado por não ter que fazer tudo às pressas como quando trabalhava na empresa de tecnologia em Brasília.
Na vida cigana, não poderiam faltar perrengues. Área alagada em torno da barraca, com água da chuva extremamente gelada. Som de cachorros brigando durante a madrugada. ;Os cachorros ficam loucos com ciclistas;, conclui Julie, ao contar que foi perseguida por cinco cães. ;Nunca pedalei tão rápido na vida e, ainda assim, eles morderam o alforge. Foi um sufoco;, diz, rindo da situação.
Pouco recurso, muita economia
A empreitada pelo mundo exigiu que Julie e Thiago abrissem mão do trabalho e de alguns bens. Sem patrocínio, apelaram para financiamento próprio. ;Vendemos nossos carros populares, sacamos o fundo de garantia e somamos a uma pequena reserva que eu tinha;, conta Thiago e revela que o casal conta com cerca de 30 mil reais para atravessar o mundo, quantia pequena se comparada a um mês de turismo tradicional pela Europa. Economia é a palavra mais falada pelos dois. A meta é gastar 10 euros por dia, por isso evitam ao máximo hospedar-se em hotel e sempre preparam a própria comida.
Na estrada, no entanto, não há economia de quilometragem. Os dois têm rodado 50km/dia e ainda tiram alguns dias de folga, mantendo o objetivo de 1 mil quilômetros por mês. ;Não é algo que fazemos com muito sacrifício. No começo, fazíamos 30km/dia. Agora nosso preparo está melhor e fazemos isso passeando;, diz Julie, e Thiago completa. ;Claro que tem os dias que são difíceis. Ás vezes é um dia inteiro de subida, no sofrimento. Mas o saldo é positivo.;
O destino ainda não foi definido. O próximo passo é passar o aniversário de 30 anos de Thiago também pedalando, com isso completarão um ano na estrada. ;A gente não determina os destinos a longo prazo porque preferimos ir de acordo com o que a estrada oferece. Queremos chegar ao Vietnã, isso é certo. E quando for a hora de voltar, vamos chegar ao Brasil de bicicleta;, almeja o brasiliense.