Enem

O sonho do jaleco branco

Alunos estudam até cinco anos para conseguir vaga em medicina. Aprovação depende de notas acima de 800 pontos

Daniel Cardozo, Especial para o Correio
postado em 18/09/2017 07:00

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O ingressar em uma universidade pública é considerado difícil para boa parte da população. Quando o curso escolhido é medicina, a trajetória exige ainda mais sacrifício. Estudantes passam até cinco anos em salas de cursinho, se privando de lazer e contato com o círculo social mais íntimo até a aprovação. No caminho, muitos acabam desistindo, por pressão da família ou por falta de condições financeiras. Morar longe de casa também é uma opção para alguns, já que, fora dos grandes centros, a concorrência acaba sendo menor. Com a nota do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), é possível alcançar espaço em todas as instituições federais do Brasil, mas, ainda assim, candidatos se deslocam para prestar vestibulares de todo o país, tentando a sorte e ganhando experiência. Para ter mais chances no Sistema de Seleção Unificada (Sisu), é necessário alcançar resultados na casa dos 800 pontos.


O Enem é a melhor porta para a universidade de medicina. Com uma boa participação, é possível concorrer nos quatro cantos do Brasil fazendo apenas uma prova. Outra opção é tentar as instituições estaduais, já que muitas delas têm médias mais baixas para ingresso. Os pontos negativo são os custos de deslocamento e a necessidade de preparação diferenciada. Para quem consegue arcar com esse investimento, pode ser vantajoso, afinal, o vestibular da Universidade de Brasília (UnB) exige muito mais esforço. Em 2016, a nota de corte foi de 830 pontos, ainda maior do que em outros estados. Contudo, metade das vagas na UnB é distribuída para participantes do Programa de Avaliação Seriada (PAS). As demais modalidades de ingresso, incluindo o vestibular tradicional, ficam com partes iguais.

Vinícius Mrozinski:

Novas tentativas

A nutricionista Mayume Moreira Hayakawa, 27 anos, sempre sonhou em ser médica. A dificuldade de aprovação a convenceu de que uma vaga na Universidade Federal de Lavras (UFLA), em Minas Gerais, seria o melhor caminho a ser seguido. Depois de se formar em nutrição, em 2014, algo parecia faltar na vida da jovem. ;Cheguei a exercer a carreira durante algum tempo, mas abandonei completamente porque queria mesmo ser médica. Meus pais sempre me apoiaram e tomei a decisão de voltar para o cursinho. Ter essa possibilidade de largar minha primeira graduação e me dedicar a uma nova tentativa é algo que me motiva bastante. Muita gente não tem essa oportunidade;, avalia. Desde então, são seis semestres perseguindo a aprovação. Pela experiência anterior, Mayume acredita que se sentiria à vontade para estudar em qualquer lugar do país.


Desde 2015, Vinícius Mrozinski, 20, alterna os estudos preparatórios para cursar medicina e o gerenciamento de uma empresa de terceirização. Enquanto a primeira tarefa toma boa parte dos dias do estudante, a outra atividade é usada como fonte de sustento. Ele procura equilíbrio entre as duas. Gaúcho de Santa Rosa, Vinícius pensa em estudar mais alguns anos, mas também cogita tentar uma bolsa de estudos, se não for aprovado em uma universidade pública. ;Sinto que estou chegando no meu limite. Se eu não passar, vou tentar Prouni (Programa Universidade para Todos) ou Fies (Fundo de Financiamento Estudantil). De todo modo, só valeria a pena se a bolsa fosse integral, porque o curso é muito caro.; Vinícius veio para a capital federal estudar no Colégio Militar de Brasília e morar junto com os irmãos, também militares. Não por acaso, ele cogita seguir carreira nas Forças Armadas e, a partir daí, cursar medicina, por acreditar na própria vocação.

Vocação não é para todos

Maria Clara cogita estudar no exterior se não obtiver nota alta no Enem



Para a estudante Maria Clara Groba, 18, nem sempre a disponibilidade de tempo e o talento natural para a área é realidade nas turmas de preparação para medicina. ;Existe gente sem a menor vocação para isso e pessoas que só estão se preparando para ser médicos porque os pais estão na profissão. É algo que me deixa um pouco incomodada;, admite. Ainda assim, Maria Claria sente ter o que a medicina requer e é por isso que ela está disposta a até mesmo mudar para outro país. ;Tenho amigos que foram fazer faculdade na Argentina. O Brasil é um dos poucos países que tem esse vestibular concorrido. Penso em estudar durante algum tempo, mas se eu chegar no meu limite, vou para lá sem problema nenhum;, projeta. ;Alguns estudantes têm medo da validação do diploma estrangeiro, mas eu acredito que não deve ser tão difícil assim.; Até lá, a jovem se dedica à exaustiva rotina de estudo de pelo menos sete horas por dia. A preparação começou quando ela completou 15 anos.

Preparação específica

A turma Performance, do curso Exatas, na Asa Sul, só aceita alunos com nota acima de 700. Frequentado principalmente por estudantes que almejam vagas de graduação em medicina, direito e engenharia, o cursinho é instrumento usado como trampolim para quem está quase lá. Segundo o diretor, César Augusto Severo, professor de física, os candidatos demoram, em média, três anos para passar no vestibular. ;Alguns chegam a cinco anos tentando, mas a aprovação pode chegar com um ou dois anos. Nesse meio tempo, os pais pressionam bastante por resultados e não conseguem perceber a evolução dos filhos;, conta. Para o professor, muitas vezes, a forma de estudos prejudica a performance dos estudantes. Maratonas de leitura podem acabar trazendo o efeito oposto.


;Toda vez que sai a notícia de alguém que passa em primeiro lugar para medicina, o aprovado diz que estudou 14 horas por dia. Temos pelo menos 20 alunos em cada unidade fazendo o mesmo. É preciso se dedicar com qualidade e ter momentos de lazer, sem perder a motivação. Costumo dizer que é como se fosse uma fila. Se continuarem se esforçando, vão conseguir ser aprovados;, explica. César Augusto Severo também conta que é comum nas salas de aula encontrar estudantes formados em outras áreas da saúde que continuam perseguindo o sonho de serem médicos.


O coordenador do curso de medicina da Universidade Católica de Brasília (UCB), Osvaldo Sampaio Netto, afirma que o perfil dos estudantes que ingressam na instituição tem pouca variação. São alunos, em maioria, entre 17 e 19 anos. Sampaio opina que a famosa pressão para que os filhos façam um curso específico está em baixa. ;Existem muitos que querem seguir os passos dos pais, sim. Mas hoje em dia não é como antigamente, quando havia essa obrigação e essa necessidade. É muito mais positivo para aqueles que têm pai e mãe médicos, porque eles observam o exemplo;, garante.


Para estimular outras facetas do curso, a grade curricular da UCB é mais voltada também para aspectos de humanização da profissão. ;Trabalhamos logo nos semestres iniciais disciplinas como ética profissional, bioética e saúde coletiva, para que eles tenham noção da realidade de boa parte da população. Os alunos podem optar por uma variedade muito grande de áreas de atuação, desde as mais ligadas à emergência, como outras mais tranquilas;, relata.

Rotina de estudos

Vestir um jaleco começou como uma meta sem compromisso para o estudante Iago Alvino, 18. Quando iniciou a preparação para o PAS, ele elegeu a medicina como objetivo por estar no topo do ranking de concorrência. A grande quantidade de advogados na família até fez com que Iago tivesse vontade de seguir carreira jurídica, mas a visão foi mudando com o tempo.


Na última edição do Enem, o jovem alcançou a média de 740 pontos. Por ter estudado em escola pública, vagas em universidades mais distantes se abriram para ele, só que esse não era o objetivo. ;Escolhi Brasília ou cidades de Minas Gerais e do Rio de Janeiro, onde tenho família, como lugares que eu iria;, conta. Assim, a expectativa é chegar aos 790 para poder ingressar nos lugares desejados.


Aos 19 anos, o candidato João Paulo Sousa Menezes acumula um bom período de preparação para a faculdade de medicina. Desde o primeiro ano do ensino médio, quando tinha 15 anos, o estudante se dedica para o vestibular, mas nem sempre da mesma maneira. ;Agora eu me dedico ao que eu gosto. Já me sinto melhor desde que mudei o foco;, garante.

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