Enem

Filosofia e sociologia na prova de humanas do Enem

Disciplinas integram a prova de ciências humanas e vêm ganhando relevância no exame. Matérias interligam-se com história, geografia e até redação

Luiz Oliveira*, Jairo Macedo-Especial para o Correio
postado em 14/10/2019 07:00
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Os milhões de inscritos no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) têm o primeiro desafio marcado para daqui a 20 dias. Em 3 de outubro, eles enfrentam, além de linguagens e redação, 45 questões de ciências humanas e suas tecnologias. Na prova, é verdade, predominam os conteúdos de geografia e história, mas a parcela restante vem ganhando em volume e nível de dificuldade. Não dá mais para ignorar os estudos em sociologia e filosofia e, menos ainda, colocá-los à parte do restante.

O pensamento filosófico e a sociologia contemporânea podem permear toda a prova e a não compreensão dessas conexões humanas pode custar caro ao candidato.

Agata Vaz: As temáticas são amplas. Nelas, a filosofia antiga pode, tranquilamente, dividir espaço com sociólogos da primeira metade do século 20. ;Acredito que o Enem pode pegar esses pensadores da antiguidade e aplicar na contemporaneidade;, afirma Agata Vaz, 17 anos, aluna do Colégio Sigma. ;Normalmente, eles não colocam um assunto diretamente sobre o conteúdo. Preferem pegar mais aplicações que a gente tem no dia a dia dessas disciplinas;, avalia a jovem, que sonha em cursar relações internacionais.

A julgar pelo exame de 2018, as expectativas de Agata não estão longe da realidade. No ano passado, figuraram textos que iam do filósofo Maurice Merleau-Ponty, em discussão sobre o papel da atividade filosófica, até o sociólogo Guy Debord, em questão que falava do impacto da economia sobre a vida social, no que ele denominava sociedade do espetáculo. Em comum, a predileção pelos tópicos recorrentes da vida em sociedade: até aqui, o Enem privilegiou conceitos de cultura e cidadania, bem como ética, justiça e cultura de massa.
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;Esses temas cumprem bem o papel da sociologia no ensino médio, que é fazer com que o aluno interprete a realidade a partir de outros olhares, para além do senso comum visto no ambiente dele;, diz Silas Amadeu dos Santos, professor da disciplina no Centro de Ensino Médio Integrado do Gama (Cemi Gama). ;As ciências humanas fazem com que o secundarista entenda que os problemas sociais são importantes e devem ser percebidos além do que ele vê;, afirma.

;Historicamente, os assuntos mais recorrentes são as relações culturais;, avalia Leandro Vieira, professor das duas matérias no canal ProEnem. ;Tudo aquilo que envolve essa temática: patrimônio cultural, patrimônio material e imaterial, etnocentrismo, práticas de comportamento cultural de um povo. Em filosofia, os temas mais presentes estão em filosofia antiga, sem dúvida, mas também a filosofia política.;

Ética

Geraldo Teixeira, 17: Geraldo Teixeira, 17, fará o exame pela primeira vez. Para filosofia, ele já tem um mapa mental do que esperar. ;Cai muita teoria do conhecimento, democracia e cidadania. Ética e política, também, só que com um viés menos agressivo, principalmente em função do momento que a gente vive com o governo;, enumera. ;Talvez tenha um pouco mais da antiguidade, relacionado à construção social da ciência.;

Segundo levantamento do SAS Plataforma de Educação, ética e justiça são, de fato, os tópicos que mais caem, compondo 20% dos itens cobrados de 2009 a 2018. Em seguida, vêm filosofia antiga (13%) e natureza do conhecimento (12,2%). ;É comum buscar o tema de cidadania na filosofia. Ela vai operar essa abordagem dos direitos sociais, já que foram os filósofos iluministas que trouxeram as bases teóricas para essa discussão;, observa Renata Esteves, professora do canal Se liga nessa história.

Em filosofia antiga, os pensadores mais presentes são os pré-socráticos e Platão, em debates éticos e governamentais, na avaliação do professor Leandro Vieira. Ele nota, porém, a retomada de outros tópicos nas últimas edições. ;Observamos o aumento das questões vinculadas à filosofia medieval e helenística, como Agostinho, Tomás de Aquino, epicurismo, estoicismo, cinismo e ceticismo. E tem a política, que perpassa a prova: Hobbes e Maquiavel aparecem de forma muito recorrente.;

Ênfase em direitos humanos

Luana Medeiros: Nos últimos cinco anos, a prova do Enem privilegiou a sociologia contemporânea (28,6%), seguida por cidadania, cultura e política (14,3% cada uma). Os dados são de levantamento do Sistema Poliedro. ;As bases utilizadas para a matéria no exame estão nos direitos humanos, pelo menos até aqui. A prova pensa os direitos civis, em perguntas relacionadas à igualdade entre mulheres e homens e racial, por exemplo. Trata também de direitos políticos, de onde surgem questões relacionadas ao poder e à democracia;, diz a professora Renata Esteves.

;A sociologia tem conexão direta com o cotidiano, de fato;, garante o professor Silas Amadeu. ;Ela pensa, por exemplo, por que a nossa sociedade, apesar de ter abraçado os direitos humanos, produz tanta violação desses mesmos direitos, tanto por parte da população quanto do Estado?;, questiona.

Para ele, os candidatos devem esperar os três pilares tradicionais da disciplina ; Émile Durkheim, Max Weber e Karl Marx ;, mas sempre de modo aplicado. Nada de indagações ;secas;, do tipo: ;o que pensa o sociólogo?;. ;Essa é a ideia fundamental do exame, a contextualização;, diz Silas. ;A partir daí, pode ser cobrado a visão de Weber sobre o Estado moderno, a parte em que o pensamento dele mais se aproxima do estudante. Marx também é importante, na medida em que passamos metade do século 20 divididos entre capitalismo e socialismo. Em Durkheim, trabalha-se ideias de controle social.;

Perguntada sobre o que espera da disciplina no Enem, Manuela Alves Correia, 17, hesita. ;Nisso, você me pegou. Acho que cai muito ética, em questões de interpretação e vivência;, supõe. Ela define os temas das duas disciplinas como ;de nível médio; e acredita que, com boa leitura, dá para se sair bem. ;Foi boa a experiência da primeira vez que fiz. Foi muita interpretação de texto. Então, nas questões de filosofia e sociologia, tinha muito que focar no que você estava lendo. Sempre tive um pouco de facilidade com essas matérias;, afirma ela, que busca vaga em pedagogia.

Outros diálogos

A tão comentada interdisciplinaridade do exame se faz muito presente nas ciências humanas. Fica difícil falar da produção de conhecimento histórico ou geopolítico sem usar aqueles que o pensaram, filosófica e sociologicamente. ;Desde sempre, em casa, fui influenciada a estudar essas duas matérias, porque pesa muito para as outras disciplinas e facilita o entendimento. Estudo como se fosse matemática ou português. Para mim, têm a mesma importância;, afirma Luana Medeiros, 17.

;Existe, em filosofia, interligação muito fácil com autores que influenciaram os acontecimentos históricos;, observa Leandro Vieira, do ProEnem. ;Da mesma forma, é impossível falar de absolutismo sem Hobbes, liberalismo sem John Locke e revolução industrial sem falar de Marx. A revolução francesa não aconteceria sem Rousseau. São autores que se vinculam à história e influem nela.;

Silas Amadeu está de acordo. Trazendo a discussão para mais perto de nós, ele cita o geógrafo baiano Milton Santos, cuja vasta produção dialogou com a sociologia e pensa a urbanização e a globalização sob o ponto de vista dos desprivilegiados. ;Milton Santos fala das migrações, de como os estados se organizam e de como a globalização tem produzido resultados adversos ao que esperávamos. No passado, pensava-se nisso como um processo que faria circular informação e produzir cidadania global.;

O professor do Cemi Gama acrescenta ainda a redação como diálogo possível. ;A forma como a sociologia fala de direitos tem eco no que é pedido na redação;, observa ele, recordando que, nos últimos anos, houve propostas de dissertação sobre manipulação de dados na internet (2018), intolerância religiosa (2016), formação educacional dos surdos (2017), violência contra mulher (2015) e publicidade infantil (2014).

* Estagiário sob supervisão de Jairo Macedo

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