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As barreiras além dos muros da escola

Emsérie de reportagens, o Correio mostra, a partir de hoje, a rotina de quem tenta retomar os estudos por meio da Educação de Jovens e Adultos (EJA). O sistema teve queda de 25% nas matrículas em seis anos

Daniela Garcia
postado em 19/05/2014 12:53

Catiane Nascimento, 25 anos: rotina entre o trabalho e o estudo atrapalha a relação com a filha de 3 anos

Daqui a três anos, quando se formar no ensino médio, Catiane Nascimento, 25 anos, pretende ser chamada de mãe pela única filha, 3 anos. Desde que a menina nasceu, as duas estão separadas porque a piauiense, radicada em Brasília, dorme, de segunda à sexta-feira, na casa onde trabalha com o babá na Asa Sul.Desde fevereiro, ela decidiu retomar os estudos no Centro de Educação de Jovens e Adultos da Asa Sul (Cesas).O plano, de médio prazo, é deixar de vez essa rotina de distância da menina. ;É chato não ser chamada de mãe. Por isso, estou estudando. Quero ter mais tempo para ficar com ela;, argumenta.

Catiane faz parte de um grupo de milhares= de brasileiros que tenta, com dificuldade, voltar aos estudos por meio da Educação de Jovens e Adultos (EJA). A partir de hoje, oCorreio publica a série de reportagens ;ODifícil Retorno; que conta a trajetória de pessoas que enfrentam desafios além dos muros da escola para completar o ensino regular. Segundo dados de 2011, da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE, o Brasil tem 56,2 milhões de pessoas com mais de 18 anos que não frequentam a rede de educação e não têm o ensino fundamental completo. Para elas, o sistema público indicado são as turmas da EJA.No entanto, a adesão à política vem diminuindo nos últimos anos. Dados do Censo Escolar, divulgados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), mostram que, em2007, haviam 4.985.338 alunos matriculados na rede; Em 2013,esse número caiu para 3.772.670. Em seis anos, houve uma diminuição de 25%nas matrículas do sistema.

Catiane está longe da escola há 10 anos, desde que deixou o Piauí para trabalhar em Brasília. Enquanto cuida de três crianças no trabalho, a filha, Lorrane, fica sob os cuidados da amiga Eva de Cássia, no Recanto das Emas, a 25km do Plano Piloto.Desde janeiro, a babá cursa, à noite, a 5; série do ensino fundamental. No sistema da EJA, Catiane pode fazer uma série a cada seis meses. Para ela, faltam, no mínimo, três anos para se formar no ensino médio. Até lá, a babá deve continuar a pagar R$ 250 por mês à amiga, com quem divide o aluguel da casa no Recanto. ;Ela já têm três filhos. Eu pago para ela cuidar da minha também. Aí, a Lorrane acaba chamando ela de mãe e eu de Cátia;, conta.

Entre os estudantes do período noturno, é comum encontrar casos de renúncia familiar em razão do tempo dedicado ao estudo. O professor de história Júlio César de Castro costuma dizer que esses jovens e adultos devem transpassar ;um muro bem alto ali fora; toda vez que vão para aula. ;Eles têm que vencer o muro do cansaço, das obrigações do trabalho ou do abandono em casa para estar aqui;, comenta.

Professores e especialistas da EJA afirmam que a maioria dos alunos desiste diante dos obstáculos do cotidiano. Ao observar de perto a evasão escolar em um colégio público de Planaltina, Roseane Freitas, à época graduanda em licenciatura em ciências naturais pela Universidade de Brasília (UnB), resolveu investigar os motivos da saída dos estudantes. ;Eu estava fazendo estágio e percebi que os alunos iam evadindo ao longo do semestre. No fim, ficavam poucos. Eu queria descobrir quais eramas dificuldades;, justifica.

Abandono
Publicada em janeiro deste ano, a pesquisa tem a intenção de revelar a percepção dos próprios estudantes sobre a evasão escolar. Foram aplicados 48 questionários para três turmas do ensino noturno, com idades que variavam de 15 a 55 anos. A maioria deles tinha entre 15 e 35 anos (70%) e era de trabalhadores (75%) em ocupações diversas como manicure, doméstica, motorista e operador de caixa.

Grande parte dos entrevistados (39,6%) apontou o desafio de conciliar trabalho, família e estudo como um dos maiores entraves para se manter na EJA. O segundo maior obstáculo seria o horário de saída do emprego (12,5%) que fica muito próximo da hora do início das aulas. ;Vários alunos saem do trabalho e vão direto para a escola, às vezes, chegam atrasados ou entram no segundo horário.Muitos dependem do transporte público que se mostra insatisfatório para atender as necessidades da população;, argumenta Roseane.Na terceira colocação, os alunos elegeram o cansaço (10,4%) entre as razões do abandono.

Emsérie de reportagens, o Correio mostra, a partir de hoje, a rotina de quem tenta retomar os estudos por meio da Educação de Jovens e Adultos (EJA). O sistema teve queda de 25% nas matrículas em seis anos

;Este problema educacional não está associado a umaspecto particular, mas envolve vários contextos: a escola, a família, a cultura, as políticas econômicas e sociais e ao próprio aluno;, avalia a pesquisadora.

Interrupções são constantes

Interromper mais de uma vez os estudos é quase regra entre os estudantes da Educação de Jovens e Adultos (EJA), dizemespecialistas do setor. Hoje na sala de aula, Joelma Santos, 38 anos, confirma a tese: ;Eu já parei quatro vezes;. A garçonete explica que dois fatores foram determinantes para mais essa tentativa. No emprego, o patrão prometeu um aumento de 10% no salário, se ela concluísse o ensino médio. E em casa, a família incentivou. ;Minhas filhas me irritaram muito até eu me matricular;, diz, ao esboçarumsorriso.

Como objetivo de manter os alunos em sala, professores tendem a ser mais flexíveis. A modalidade, por exemplo, não conta com boletim ou conselho de classe. Contudo, a gestão escolar, seja estadual, seja da prefeitura, tem a autonomia na instrução de regras das escolas, segundo a Lei de Diretrizes e Bases de 1996. A política mais maleável nem sempre, entretanto, é praticada nas escolas do Brasil, comenta a professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Analise da Silva. ;Já vi escolas que só liberam a merenda às 20h40 para segurar os alunos na escola. Eles, emsua maioria, vêm direto do trabalho e querem comer antes de estudar. Não tem por que inventar essas regrinhas. A EJA não está lidando com crianças.;

Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em EJA da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Debora Cristina Jeffrey também defende que os educadores estejam atentos à realidade dos alunos. Segundo ela, os professores têm o desafio de adequar o currículo à vida dos trabalhadores, com pouco tempo disponível para estudo. Nas escolas do Distrito Federal, os alunos ouvidos pelo Correio dizemque é com um os docentes não exigirem dever de casa ou os deixarem fazer prova com consulta.

Entre os estudantes do Cesas, o professor de história Júlio César de Castro é conhecido por ser flexível e entender a situação de cada aluno. Com a folha de chamada na tela do computador, ele mostra inúmeros F, que representam as faltas. ;Essas aqui são mãe e filha. A filha teve bebê e a mãe teve de se ausentar para ajudar;, exemplifica.

Na última quarta-feira, Júlio César foi surpreendido por uma aluna quando estava no comando da última aula da classe. ;Eu estava explicando a matéria, ela veio em minha direção e disse: ;Professor,me desculpe. Eu vou embora, estou cansada demais;. Dá vontade de responder: ;Me desculpe, você;. Porque foi a sociedade que tirou esse direito dela;, conta. (DG) Colaborou Renata Mariz

Estava explicando a matéria, ela veio em minha direção e disse: ;Professor,me desculpe.Eu vou embora, estou cansada demais;.Dá vontade de responder: ;Me desculpe, você;. Porque foi a sociedade que tirou esse direito dela;

Júlio César de Castro,
professor de história do Cesas

PALAVRA DE ESPECIALISTA

Processo por toda a vida
Na história contemporânea recente da educação de jovens e adultos no Brasil há duas marcas fortes: a Constituição Federal de 1988 em que o ensino fundamental foi estabelecido como direito público subjetivo, inclusive para os que não tiveram oportunidade de cursá- lo ou concluí-lo na ;idade própria; e a Lei de Diretrizes e Bases de 1996 que garantiu a oferta de educação escolar regular para jovens e adultos, com características e modalidades adequadas às suas necessidades e disponibilidades. Juntas, garantiram o direito à escolaridade em reconhecimento da grande dívida histórica para com os jovens e adultos não escolarizados.

Sem diminuir o peso da dimensão escolar, há umcrescente reconhecimento da contribuição de outros processos de aprendizagem, não estritamente escolares, para o desenvolvimento do potencial e da autonomia de cada joveme adulto:a formação inicial e continuada para o trabalho, a educação ambiental, a educação cidadã, a educação para os direitos humanos, os esportes, as atividades de leitura e as bibliotecas, assim como as atividades culturais. Essa dimensão não escolar abrange todos os espaços e atividades em que, como jovens e adultos, aprendemos a desenvolver a nossa inteligência potencial e a contribuir para a vida cultural, social e produtiva da sociedade. A satisfação dessa diversidade de necessidades de aprendizagem e a garantia da inclusão dos que ainda não tiveram o seu direito à educação respeitado, requerem uma educação ao longo e ao largo da vida.

TIMOTHY D. IRELAND, coordenador da cátedra daOrganização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) da EJA na Universidade Federal da Paraíba

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