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Triste América Latina

O escritor uruguaio Eduardo Galeano, autor do clássico As veias abertas da América Latina, não resistiu às complicações do câncer de pulmão e morreu ontem na capital Montevidéu, aos 74 anos. A obra de Galeano se tornou leitura obrigatória e ícone do pensamento da esquerda latino-americana. Amante do futebol, era um especialista do esporte, que considerava uma performance teatral

postado em 14/04/2015 10:24
Eduardo Galeano 1940 - 2015 (Carlos Vieira/CB/D.A Press)
Eduardo Galeano 1940 - 2015


;Neste mundo, há finais que também são começos, mortes que são nascimentos;, disse o escritor uruguaio Eduardo Galeano quando José Saramago morreu, em 2010. Ontem, foi o dia do autor de As veias abertas da América Latina abrir a possibilidade de eternizar sua obra por meio de um fim. O autor, de 74 anos, não resistiu ao câncer de pulmão que o mantinha internado em Montevidéu desde sexta-feira.

A memória sempre foi o norteador do trabalho de Galeano, que esteve em Brasília no ano passado durante a segunda edição da Bienal Brasil do Livro e da Leitura, quando recebeu homenagens ao lado do escritor paraibano Ariano Suassuna. Na ocasião, relembrou os 50 anos do golpe militar brasileiro e leu, diante de mil pessoas, entre outros contos, Agosto 30. Dia dos Desaparecidos, que classificou como ;os mortos sem tumbas, as tumbas sem nome.;

Embora As veias abertas... seja a obra mais famosa ; considerada um clássico da literatura latino-americana, traduzida em mais de 20 idiomas ; Galeano, jornalista, ensaísta, ficcionista, intelectual, militante e amante de futebol, escreveu mais de 30 livros, quase todos traduzidos no Brasil, e se mostrou versátil e lúcido em tudo o que produziu. Antes de se tornar um intelectual destacado da esquerda latino-americana, Galeano trabalhou como operário industrial, desenhista, pintor, mensageiro, datilógrafo e caixa de banco, entre outros ofícios.

Quando o clássico que o consagrou foi publicado, Galeano tinha 31 anos e admitiu, em entrevistas e palestras que fez ao longo da vida, não ter, naquela época, formação suficiente para a tarefa à qual se dispôs. ;Não me arrependo de tê-lo escrito, mas é uma etapa que, para mim, está superada;, acrescentou.

O livro, no entanto, ainda mobiliza leitores em todo o mundo. Em 2009, durante a 5; Cúpula das Américas, o então presidente da Venezuela, Hugo Chávez, presenteou seu colega norte-americano, Barack Obama, com um exemplar de As veias abertas da América Latina, que havia sido proibido nos anos 1970 pela censura das ditaduras militares do Uruguai, Argentina e Chile. Na época do presente de Chávez a Obama, o livro saltou em um só dia da 60.280; para a 10; posição na lista de mais vendidos da Amazon.

"Eu não viajo para chegar. Viajo para ir;

Escritor

Nascido em Montevidéu em 3 de setembro de 1940, Eduardo Galeano começou muito jovem no jornalismo, nos mais variados gêneros literários como o ensaio, a poesia e a prosa. A partir de Veias abertas da América Latina, o autor construiu um estilo muito particular de escrita, com análises costuradas à narrativa. ;As veias; foi um ponto de partida, não de chegada. A partir dali, fui desenvolvendo uma linguagem própria. Encontrei outros estados, outros perfis e outros temas da realidade;, comentou em fevereiro de 2013, em uma entrevista ao Coletivo de Escritores Aristóteles de Espanha.

A produção literária de Galeano está entrelaçada à militância política que o conduziu ao longo da vida. Combinando análise política com jornalismo e ficção, Galeano desvendou a alma da América Latina em obras como Memória do fogo, trilogia em que dissecava as principais figuras históricas no período colonial do continente, o que lhe rendeu comparações a John Dos Passos e Gabriel García Marquez.

A característica multidisciplinar do autor se manifesta com muita clareza em Livro dos abraços (1989), uma coleção de histórias curtas e muitas vezes líricas, apresentando as visões de Galeano em relação a temas diversos como emoções, arte, política e valores.

"Tudo está aí. Saio até a rua todo dia com meus ouvidos e olhos bem limpos para ouvir as vozes secretas descobrir as cores escondidas. Sou um açador de histórias, m escutador de vozes;

Militante

O escritor se tornou um nome importante do pensamento de esquerda latino-americana, com a publicação de As veias... em que analisa a história do continente, a partir do período colonial, com argumentos contra o que considerava exploração econômica e política do povo latino-americano pela Europa e pelos Estados Unidos. O livro se tornou leitura obrigatória entre os intelectuais de esquerda latino-americanos, mas foi censurado. O escritor foi forçado a se exilar na Argentina após o golpe militar no Uruguai, em 1973.

Na Argentina, lançou a revista Crisis. Porém, em 1976, outro golpe militar, dessa vez liderado pelo general Jorge Videla, coloca novamente sua vida em risco em território argentino.

"Em seus 10 mandamentos, Deus esqueceu-se de mencionar a natureza. Entre as ordens que nos enviou do Monte Sinai, o Senhor poderia ter acrescentado, Por exemplo: ;Honrarás a natureza,
da qual tu és parte;;

Intelectual

Eduardo Galeano é referência de pensamento e crítica social e política, especialmente na América Latina. Toda a produção do autor é fruto de observações apuradas e reflexões consistentes. Ensaísta comprometido com as causas da esquerda, explorou em suas obras as profundidades e os contrastes dos países latino-americanos.

Em 2006, Galeano se juntou a outros nomes de referência como Gabriel García Marquez, Mario Benedetti, Ernesto Sábato, Thiago de Mello e Pablo Milanés na assinatura da Proclamação de Independência de Porto Rico do Congresso Latino Americano e Caribenho.

O escritor, cuja educação formal não passou do primeiro ano do Ensino Médio, afirmou ter aprendido a arte de contar histórias nos antigos cafés da capital uruguaia, dos quais era um cliente assíduo. ;Tive a sorte de conhecer Scheherazade; não aprendi a arte de contar histórias nos palácios de Bagdá, minhas universidades foram os antigos cafés de Montevidéu; os contadores de histórias anônimos me ensinaram o que eu sei;, disse o autor em outubro de 2009, em Madri.

Galeano começou a carreira de jornalista aos 14 anos, quando publicou sua primeira caricatura no jornal El Sol, do Partido Socialista do Uruguai, sob a assinatura de ;Gius;, onomatopeia irônica de seu sobrenome de origem galesa.

Entre 1961 e 1964 ele foi editor da prestigiada revista Marcha, dirigida por Carlos Quijano e que era reduto de intelectuais latino-americanos, para qual também escrevia Mario Benedetti. Em seguida, foi diretor do jornal independente de esquerda Época (1964-1966). A carreira de escritor tomou grande parte do seu tempo nos anos seguintes.

"O árbitro (de futebol) é arbitrário por definição. Este é o abominável tirano que exerce sua ditadura sem oposição possível e o verdugo afetado que exerce seu poder absoluto com gestos de ópera;

Amante do futebol


Fã de futebol, Galeano sonhava em ser jogador e acreditava que o jogo no campo era como uma performance teatral. O autor foi considerado ;o Pelé da literatura sobre o esporte; pelo jornal britânico The Guardian, que listou as obras mais importantes sobre o tema para serem lidas durante a Copa do Mundo do ano passado. Nenhum dos livros indicados, de acordo com o jornal, superaria O futebol ao sol e à sombra, publicado em 1995.

No livro, o uruguaio narra a final da Copa de 1950, no Rio de Janeiro, episódio que entrou para história do futebol como ;Maracanazo;, quando o Brasil perdeu em casa por 2 a 1 para o Uruguai.
Em entrevista coletiva durante a Bienal do Livro do ano passado, em Brasília, Eduardo Galeano disse que não acredita em especialistas, principalmente quando o assunto é futebol. O torcedor do time uruguaio Nacional afirmou que especialistas em futebol são perigosos para a sociedade e que os times do continente foram sequestrados pelos interesses econômicos da indústria do esporte. ;Os clubes foram sequestrados pelos dirigentes, pela política. Mas está surgindo esse movimento de recuperação dos clubes para que voltem a ser o que eles querem ser: um conjunto de pessoas ligadas por um amor a uma camiseta e não por interesses econômicos;, disse.

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