Com esforço e ajuda, Emanuel conseguiu o tão sonhado diploma no mês passado |
Aos 28 anos, Emanuel Bonfim havia acompanhado várias formaturas: a do pai, a da madrasta, a da irmã; Mas faltava a dele. ;Chegou um momento em que ele não queria mais ir à escola. Ele dizia: ;poxa, todo mundo termina a escola! Eu não vou terminar?;;, conta a irmã e jornalista Isabela Bonfim, 24. Em julho, Emanuel, que tem síndrome de Down, conseguiu realizar o sonho de concluir a segunda etapa do ensino fundamental no Centro de Educação de Jovens e Adultos (Cesas), localizado na 602 Sul. ;;Foi uma alegria e tanto, porque vi que tudo o que fiz com esforço, com sacrífico, no fim, me deu uma boa formação;, comemora o jovem.
;Na cerimônia de formatura, ele chorava muito e beijava o diploma;, relembra a professora de português Marcilia Dalosto, 49. ;Comecei a trabalhar no Cesas há três anos e, desde aquela época, ouvia o Emanuel falar sobre como seria o dia da formatura, como ele imaginava todo mundo gritando por ele: ;Manu, Manu!’; Para se formar no ensino fundamental, foi essencial a ajuda do pai, Genivaldo Bonfim, 48 anos, técnico de segurança e transporte da Procuradoria-Geral do Ministério Público. Durante a cerimônia, Genivaldo também foi homenageado: ganhou um certificado pela participação na educação do filho. ;Ele não foi apenas um pai, foi um professor;, define Marcilia. ;Foi muito emocionante acompanhar essa história, ver os dois chegando juntos, abraçadinhos na escola, ver o pai ensinando o filho.;
Em 1987, quando Emanuel nasceu, Genivaldo traçou uma meta: ;Decidi que queria criar meu filho para que ele levasse a vida mais normal possível;. Nesse caso, a escola não é importante só para a aquisição de conhecimento, é também uma forma de garantir que a pessoa com síndrome de Down possa conviver com colegas e ter uma vida social. No ensino especial, no entanto, Emanuel estava se sentindo estagnado, já que o método não é dividido em séries, como no ensino tradicional. Em 2011, ele migrou do ensino especial para a Educação de Jovens e Adultos (EJA), que recebe pessoas que tiveram a educação interrompida e querem concluir os estudos. ;Quando foi para o ensino regular, Emanuel viu que havia séries para concluir, então ele poderia se planejar e estabelecer metas;, relata a irmã Isabela.
Em 2012, veio mais uma mudança: Emanuel passou a estudar por educação a distância para definir a própria agenda. ;Assim, eu poderia me organizar na vida, ir para festas sem me preocupar com o horário de voltar para casa, ver televisão;, conta. Genivaldo ajudava o filho a estudar. Para ensinar o conteúdo, teve que revisar matérias vistas anos atrás e esquecidas. O pai também preparava listas de exercícios e visitava com frequência a escola para tirar dúvidas com professores, negociar datas de exames e pedir que aumentassem a fonte em que as provas eram impressas.
Por conta da síndrome, Emanuel enfrenta algumas barreiras de aprendizagem, entre elas, visão fraca e dificuldades para lidar com raciocínio lógico e aprender o significado das palavras. ;É difícil achar livros que ele consiga ler. Então, imprimo o material aqui em casa, com fonte Arial 16;, conta Genivaldo. ;A principal barreira é a linguagem, porque algumas pessoas não sabem lidar com ele, por exemplo, na hora em que o Emanuel vai fazer um pedido no restaurante;, afirma. Isabela acredita que o apoio da família é fundamental para quem tem Down. ;Diferentemente de outras deficiências cognitivas, não há como dizer até onde a pessoa pode ir. Com Down, o aprendizado depende do quanto se é estimulado.;
Habilidades
"Esse apoio que recebo é importante para eu poder ser o que eles são para mim hoje. Eu me inspiro no meu pai, na minha mãe, na minha avó. Um dia, quero ser apoiador também, para minha mulher, meus filhos e meus netos" Emanuel Bonfim, funcionário do STJ e recém-formado no ensino fundamental |
Emanuel é tão organizado que ficava bravo quando algum imprevisto atrapalhava o horário de estudos. Ele conciliava a escola com o emprego de assessor de gabinete no Superior Tribunal de Justiça, onde trabalha há três anos. ;O que eu mais gosto no STJ é da amizade, do carinho, da paciência que as pessoas têm comigo. Isso me motiva muito para continuar trabalhando;, conta. No plano profissional, Emanuel tem interesse em fazer um curso técnico de culinária, e aprender a pintar, depois que estiver aposentado. ;Quero me encontrar.; O próximo sonho a ser realizado é abrir o próprio negócio: uma loja de doces, bolos e salgados. ;Quero ser o patrão, mas não é só para mandar, é para ser amigo dos meus funcionários também.;
A família tem papel significativo na vida de Emanuel, que sonha ser pai. ;Esse apoio que recebo é importante para eu poder ser o que eles são para mim hoje. Eu me inspiro no meu pai, na minha mãe, na minha avó. Um dia, quero ser apoiador também, para minha mulher, meus filhos e meus netos;, planeja.
Inclusão
;Quando alguém tem uma deficiência, o professor não quer conhecer o aluno, quer conhecer a síndrome. Mas a síndrome não diz quem é o aluno: ele é uma pessoa única, com habilidades e dificuldades diferentes. Quando isso ocorre, estamos olhando para o lugar errado, porque não enxergamos as oportunidades que ele tem de aprender.; A afirmação é da fonoaudióloga Eliane Ramos. Segundo ela, incluir pessoas com síndrome de Down no ensino regular é uma oportunidade para que estudantes sem deficiência possam conviver em um ambiente mais diverso. ;Ninguém pensa no que cada um de nós perde quando negamos o ensino a estudantes com deficiência. Quando a inclusão vira realidade, você amplia a experiência de vida.;
O Cesas se adaptou às necessidades de Emanuel. ;Isso é um direito dele, não é um favor que fazemos;, afirma a professora Marcilia Dalosto. Como o conteúdo de uma prova era bastante extenso, a escola o dividia em três avaliações. ;Na Educação para Jovens e Adultos, o que é dado em um ano numa escola tradicional é reduzido para 10 semanas. É muito conteúdo para ser memorizado;, diz a professora. Como Emanuel tem dificuldade motora, as provas eram planejadas para que ele tivesse que escrever menos.
Palavra de especialista
Inclusão de verdade
Ainda há muita dificuldade não apenas de acesso à educação e de permanência nas escolas públicas e privadas por pessoas com deficiência, mas também de participação efetiva no processo de aprendizagem. Atribuo isso à dificuldade que
a sociedade tem de entender que todas as crianças têm direitos. Olham para a criança com deficiência como um ser que não tem todos os direitos, apenas alguns.
Não acho que hoje exista no Brasil um movimento organizado para que a educação inclusiva ocorra. As pessoas entendem que educação inclusiva é a entrada dos estudantes com deficiência, mas ela não é a soma de quem tem e de quem não tem. É uma escola que dá conta de todos os alunos de acordo com as suas formas de aprender. A educação inclusiva não é apenas para quem tem deficiência, ela é para todos, porque os estudantes vão ter acesso a uma escola menos
discriminatória.
Temos que passar da fase da conscientização para a da ação, que deve partir de todos, não só de quem tem parentes com deficiência. Na prática, a família acaba fazendo o papel da escola, mas isso não é uma experiência inclusiva. O pai ocupa o lugar do educador porque a inclusão ainda é incipiente, mas não deveria ser assim. Não podemos nos contentar com pouco. Quanto mais desafios a diversidade gera, mais soluções criativas aparecem. A escola inclusiva é um processo que a cada dia se renova, mas não podemos ter medo disso.
Claudia Werneck, jornalista e escritora especializada em inclusão. É autora de 14 obras que tratam do assunto, entre eles o primeiro livro sobre síndrome de Down voltado para leigos, Muito prazer, eu existo, publicado em 1992.