Uma floresta, retratada em estilo realista e com riqueza de detalhes, quase passa despercebida por quem anda pela Rua Nacional, nos arredores da invasão Vila do Boa, próxima a São Sebastião. Pintada no muro de uma das casas da rua, a obra, que se perde em meio aos lotes com casa de madeira e chão de terra, marca o local onde sonhos se realizaram e outros começaram a ser cultivados. A construção é simples e divide, no mesmo lote, espaço com outras do mesmo perfil.
Em dias de chuva, a água escorre abundante pelo chão irregular, entre o portão e o interior da casa. É preciso andar com cautela para não cair na lama escorregadia. Ainda assim, a ausência de espaço ou mesmo de estrutura não é empecilho para que o morador da casa, Nivaldo Nunes, 39 anos, desenvolva, ali mesmo, o trabalho que procurava exercer quando saiu do Maranhão, há quatro anos, e veio para Brasília. O pintor trabalha para uma imobiliária e faz bicos para complementar a renda. Mas é nas horas livres que ele se realiza, dando aulas gratuitas de pintura e desenho a 40 crianças carentes da Vila do Boa, no instituto que tem o mesmo nome do dono, fundador e único professor.
Tudo começou quando Nivaldo ainda era criança. Ainda novo, ele começou a trabalhar na roça como agricultor, mas o amor pelas artes sempre esteve ali e, segundo ele, o dom de pintar também. ;Eu sempre tive o sonho de ser um artista e ter minha própria escola para ensinar aquilo que eu aprendi, mas, lá no Maranhão, eu não tinha recursos, era mais difícil. Por isso, vim para cá.; Em 2012, Nivaldo e o irmão, que hoje mora em Brazlândia, se despediram dos pais, no Maranhão, e partiram de ônibus rumo ao Distrito Federal.
Nivaldo faz pinturas tão realistas quanto aquela que dá cor à parte externa da casa, mas não tem formação em artes plásticas ? ou qualquer outra além do ensino médio, que concluiu ainda no Maranhão. ;Aprendi lendo revistas e, mais tarde, com a internet. Agora que dou aulas aprendo muito mais com os alunos, eles têm muito a me ensinar também;, diz, cercado de meninas e meninos que, mesmo enquanto ele conversa com a reportagem, demandam a atenção do mestre para mostrar e perguntar sobre os trabalhos.
Questionado sobre a intenção ou possibilidade de cursar uma faculdade, ele demora alguns instantes para responder e tenta escolher palavras que justifiquem sua posição sobre o assunto. Por fim, resume: ;Não me imagino nessa situação;. As aulas ocorrem gratuitamente aos sábados, das 8h às 10h e das 14h às 16h. As turmas são formadas por meninas e meninos a partir dos 7 anos, mas a idade máxima para ingresso ou permanência não é estipulada. Segundo Nivaldo, adolescentes de até 15 anos participam do projeto.
O trabalho teve início em 2012, com oficinas esporádicas ligadas ao Instituto Metamorfose, realizadas sob uma tenda branca no quintal de Nivaldo, em frente ao muro com a floresta pintada que deu início a tudo. ;Enquanto eu pintava essa paisagem, as crianças se aproximavam, ficavam interessadas. Algumas delas até me ajudaram. A partir daí, começaram as oficinas;. No ano passado, o Instituto Metamorfose deixou de funcionar na casa de Nivaldo, mas, em novembro, ele decidiu que devia continuar o trabalho e criou o próprio instituto. ;Plantamos nas crianças um sonho e o amor pela pintura, eu não quis abandonar isso;, declara.
Pequenos artistas
O interior da escola de artes na Vila do Boa é tão simples quanto a parte de fora. A geladeira, o armário e o sofá dividem um cômodo apertado com cadeiras, cavaletes, prateleiras cheias de tinta, pincéis e quadros. ;Nossa maior dificuldade é a falta de espaço. Só não atendo mais crianças porque não tenho condições;, diz. Paredes de madeira, chão de cimento e fiação elétrica visível dão o toque final na aparência humilde, mas a decoração é sofisticada: alguns quadros de Nivaldo ornam o ambiente.
Apesar disso, o que chama atenção são os trabalhos das crianças. Coloridos e de estilos realista, cubista, impressionista, futurista ou abstrata, eles ficam pendurados nos quatro cantos da sala. Cada um dos pequenos aponta para algum quadro, nos cavaletes ou nas paredes, reivindicando a autoria das obras. ;O que eu mais gosto de pintar são flores;, diz Elaine Gouveia, 11 anos, e mostra um quadro de natureza-morta, o último que produziu. ;Quando eu crescer, quero ser uma pintora igual ao professor;, confessa.
Elaine é aluna de Nivaldo desde 2014, quando a atividade ainda consistia em oficinas sob uma árvore da rua e, mais tarde, sob a tenda branca. Assim como em casa e na escola, ela faz as aulas acompanhada dos irmãos Mateus Gouveia, 13 anos, e Milena Gouveia, 10. Eles não têm o mesmo sonho de Elaine, mas o gosto por fazer arte não é menor. Milena quer ser professora quando crescer, mas não abre mão das aulas. Mateus conta que teve de se adaptar para não ficar de fora da atividade de que tanto gosta. ;Aqui eu aprendi a desenhar e a pintar bem certinho e bonito, mas aprendi também a me comportar melhor. O professor diz que, se não tivermos boas notas na escola, não vamos poder pintar. Eu não quero isso;, conta o garoto.
Crianças de vários níveis de habilidade são supervisionadas por Nivaldo, mas o carinho, segundo ele, parte igualmente de todas e é retribuído na mesma proporção. ;Os pais me agradecem, porque, no período em que estão aqui, eles poderiam estar na rua, fazendo outras coisas. É muito gratificante passar a eles tudo o que sei e receber, em troca, tanto respeito e carinho;, diz Nivaldo, mais uma vez cercado pelos aprendizes.
Para ajudar
O Instituto de Artes Nivaldo Nunes aceita doações, como material de pintura e desenho (cavaletes, quadros, tintas, pincéis etc). Para doar, basta entrar em contato com Nivaldo pelo número 9222-9474
SOLIDARIEDADE
40
Quantidade de meninos e meninas beneficiados pelo projeto