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Primeira infância x Internet

Para pesquisador espanhol, o importante para garantir navegação segura é mediar e restringir os conteúdos acessados e não o tempo de uso. Já a Sociedade Brasileira de Pediatria recomenda que bebês tenham acesso a dispositivos digitais só depois dos 18 meses e, após isso, crianças de até 6 anos deveriam ficar de olho em tela no máximo duas horas por dia

Ana Paula Lisboa
postado em 25/03/2018 17:18 / atualizado em 19/10/2020 11:46

Às vezes, parece que as novas gerações nascem conectadas. Com poucos meses, bebês se interessam pelo brilho, pelas cores, pelos sons e pelos movimentos em telas de celulares, tablets, computadores, televisões. Antes do primeiro aniversário, meninos e meninas conseguem usar smartphone sozinhos, “escolher” um vídeo para assistir e até pular para o próximo caso se cansem. O uso das ferramentas precede saber ler ou escrever. Por um lado, as novas tecnologias são fonte de entretenimento e informação; por outro, trazem riscos em termos de privacidade e de conteúdos inadequados para crianças pequenas. Na primeira infância, período de 0 a 6 anos, a preocupação com a internet precisa ser ainda maior, visto que, nessa fase, há menos consciência e autonomia para lidar com as ameaças da rede. Para piorar, falta regulação efetiva por parte dos pais e do sistema de educação. É no que acredita o espanhol Lucas Ramada Prieto, estudioso de ficção digital para crianças e jovens. Ele defende a vigilância em termos de conteúdo e não de tempo de acesso.

 

Fátima Guerra, doutora em educação infantil e professora aposentada da UnB   


“ O importante não é limitar quantas horas a criança poderá usar a rede. A Associação Americana de Pediatras, por exemplo, disse, em 2010, que era preciso limitar e, em 2016, voltou atrás. Normas rígidas de quantidade de uso não levam em conta o contexto”, comenta ele, que veio ao Brasil esta semana para participar, em São Paulo, do seminário internacional Arte, palavra e leitura na primeira infância, evento organizado pela Fundação Itaú Social e pelo Serviço Social do Comércio (Sesc). Já a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) tem recomendações diferentes de acordo com a faixa etária na primeira infância: proibição do uso até os 18 meses e limitação de até duas por dia até os 6 anos (saiba mais em Palavra de especialista ). Fátima Guerra, doutora em educação infantil e professora aposentada da Universidade de Brasília (UnB), pondera que só observar o período gasto na rede não basta. “Estabelecer quantos minutos ou quantas horas se pode usar não resolve a questão porque a criança ainda poderia ver algo inadequado. O ideal é que cada um estabeleça o próprio limite baseado com confiança mútua entre pais e filhos.”

 

Lucas Ramada Prieto, estudioso de ficção digital para crianças e jovens   


No entanto, a pedagoga chama a atenção para a importância de não generalizar. “Não dá para universalizar, cada faixa etária, cada contexto é diferente. Se o menino ou a menina começa a abusar ou descumprir o combinado, às vezes, é o caso de tirar totalmente. Criança precisa de limites e não só na questão da internet”, defende. “Não se deve ficar o dia inteiro on-line, pois há outras coisas do universo infantil igualmente importantes, como sair ao ar livre, tomar sol, brincar, relacionar-se fora da escola”, diz. “Não existe receita de bolo. Cada criança é diferente”, defende. Lucas Ramada Prieto alerta para o perigo de pensar que há problema no uso apenas da internet. “As telas fazem parte do ecossistema de ficção, arte e cultura — que envolve livros, jogos, músicas. Estar muito imerso em uma tela é como estar muito imerso em um livro e, se vemos uma criança lendo muito, provavelmente não acharíamos ruim ou perigoso”, compara o doutor em didática da literatura pela Universidade Autônoma de Barcelona, onde é professor e membro do Gretel (Grupo de Pesquisa de Literatura Infantil e Educação Literária).

 

“ Não é tão importante definir períodos de uso. Não há sentido porque se trata mais de ensinar a crianças que não se pode ficar todo o tempo fazendo uma coisa só, seja usar o celular, jogar futebol, ler, seja assistir a novela. Limitar só porque é on-line não faz sentido”, argumenta. “É mais relevante verificar o que se acessa.” O principal para um uso saudável da rede mundial de computadores, na visão da professora Fátima Guerra, é estabelecer uma relação de confiança com os filhos. “Não deve ser algo de cima para baixo. Acessar a internet também não deve ser usado como prêmio, punição ou chantagem — se você fizer isso, deixo brincar no celular”, ensina a mestre em psicologia. “Tem muito pai que dá o tablet ou o celular quando quer que o filho fiquei quieto, num restaurante ou avião. Não deveria ser esse o uso”, orienta. Outro tema polêmico é conciliar privacidade e supervisão. “O acesso paterno tem de ser conversando, olhando junto”, aconselha. Tantos aspectos complexos deixam claro para a professora da UnB que educar na era digital é muito mais difícil. “A saída é o diálogo e, se você não estabelece o diálogo e a relação de confiança desde muito cedo, não é na adolescência que conseguirá fazer isso”, aponta.

Mediação

É consenso entre especialistas que se faz necessário regular o acesso de alguma forma, mas isso não é tão frequente quando deveria. “Há perigos envolvidos porque existe um fenômeno atual de crianças que se autorregulam, elas mesmas escolhem a cultura digital que consomem. As instituições, inclusive a família, em geral, não chegam a mediar isso”, comenta Lucas Ramada Prieto. De acordo com ele, as unidades de ensino, no caso dessa fase, creches e jardins de infância, também não se prestam ao papel de abordar as histórias de ficção audiovisuais disponíveis on-line. “Ainda não há foco em cinema, animação, desenhos, jogos. Se não formarmos professores para lidar com isso, esse conhecimento nunca vai chegar às famílias”, aponta. O resultado da falta de supervisão ou de uma supervisão pouco presente são crianças pequenas decidindo sozinhas o que acessar no universo virtual.

“ Isso é ruim porque são indivíduos em formação, sem as habilidades necessárias para interpretar criticamente e até pesquisar o que existe”, afirma Lucas. Isso esconde ainda outro problema. “A carga de decidir o que assistir e o que jogar parece que fica com as crianças, mas, na verdade, quem o faz são as empresas, o mercado, a indústria”, critica. “Quando se deparam com obras digitais boas de fato, há muitos efeitos positivos, pois a abordagem é feita com múltiplas linguagens (da ilustração, do cinema, da literatura, da música, dos jogos) e estimula a habilidade de interpretação crítica”, observa o criador do canal do Instagram EstoNoVaDeLibros (voltado para divulgação de ficções digitais para crianças). A professora Fátima Guerra também ressalta a importância da mediação. “Há jogos e desenhos com muita carga agressiva: é preciso matar para vencer. Também há games ou sites ditos para meninas e ou para meninos porque tem carrinho ou boneca. Cabe conversar sobre tudo isso.”

Na minha casa

 

Thamara entre as filhas Emanuela, 4, e Ana Carolina, 9

Cada uma tem um celular; geralmente, as meninas gostam de acessar canais do YouTube

Para Thamara Cardoso, 27 anos, o uso de internet pelas filhas, de 4 e de 9 anos, é um dilema. Cada uma tem um celular — a caçula, Emanuela, ganhou um aos 2 anos. Antes, o uso era liberado a qualquer momento do dia, mas, depois de problemas, a mãe resolveu limitar. “Eu as peguei vendo, sem malícia, desenho inadequado no YouTube, coisas maldosas feitas por adultos mostrando personagens infantis, como Elsa e Homem-Aranha, tendo relações sexuais”, conta ela, que é passadeira de roupas. A partir do episódio, Thamara passou a deixar as meninas usarem os aparelhos duas horas diariamente (uma de manhã, antes de irem à escola, e outra à noite) de segunda a sexta. Nos fins de semana, acessam sem restrições. Outro motivo para estabelecer limites foi recomendação médica. “A maior, a Ana Carolina, faz tratamento para puberdade precoce há um ano e o endocrinologista explicou que o uso excessivo influencia os hormônios”, afirma.

Acostumar-se com os novos padrões foi difícil. “Elas fazem cara feia, ficam emburradas. A menor fica agressiva. Peguei a maior usando meu celular escondido”, lembra. A mãe percebeu, no entanto, que era preciso limitar. “Elas não podem ter por conta própria porque ficam viciadas. A mais nova não brincava com nada, não queria comer, só queria o celular direto. Então, eu tinha de usar o celular para isso: eu deixo usar se você tomar banho”, explica. Apesar de ter definido regras de tempo, Thamara não acompanha muito a questão do conteúdo. “Fiquei calejada, não fico mais em cima. Se elas me deixam sossegada, deixo usando. Em geral, a mais velha gosta de youtubers que fazem pegadinhas e trollagens e a mais nova curte desenhos. Também jogam alguns games de cuidar de bichinho”, diz. Cada uma usa o celular sozinha: a Emanuela, que ainda não sabe ler ou escrever, acha o que quer falando o nome do personagem ou do canal. “O dispositivo reconhece áudio. Ela fala bem embolado e, para conseguir fazer a pesquisa, precisa pronunciar as palavras mais claramente. Nessa parte, a internet ajudou um pouco”, explica.

Thamara também percebe que a internet foi útil para que Ana Carolina aprendesse a organizar e a decorar o próprio quarto, além de se arrumar. A privacidade ainda é uma questão problemática. “Ela tinha WhatsApp, mas começou a apagar todas as mensagens enviadas — para o pai e outros familiares — para eu não poder ler. Então, fiz ela desinstalar”, relata. Ana Carolina é fã de vários youtubers e enjoou de desenhos. “São muito de criancinha”, explica a menina. “Eu gosto de canais do YouTube, como Planeta das Gêmeas, Julia MineGirl, Bela Bagunça, Flavia Calina… Antes eu também assistia os vídeos do Felipe Neto”, relata. A garota concorda com a decisão da mãe de limitar o tempo de uso. “Antes eu era muito viciada, não sobrava tempo para brincar, fazer tarefa de casa, não sobrava tempo para nada. Mas é bom acessar a internet porque você descobre um monte de coisa e ela ajuda você a fazer coisas que sempre quis, como decorar o quarto”, diz. “A Emanuela acessa canal de massinha Play Doh e o canal da Lelê.”

 

Palavra de especialista

 

Para pesquisador espanhol, o importante para garantir navegação segura é mediar e restringir os conteúdos acessados e não o tempo de uso. Já a Sociedade Brasileira de Pediatria recomenda que bebês tenham acesso a dispositivos digitais só depois dos 18 meses e, após isso, crianças de até 6 anos deveriam ficar de olho em tela no máximo duas horas por dia 

 

Questão de saúde
A internet tem a parte boa e tem a parte ruim. Para crianças de até 1 ano e seis meses, o acesso a qualquer tipo de tela (celular, tablet, TV, computador) nunca será benéfico porque mesmo um app desenvolvido para essa faixa etária nunca será mais rico que a interação face a face com um cuidador. Até 6 anos, o recomendado é acessar até duas horas por dia, para que os benefícios sejam maiores que os malefícios. A partir dessa idade e na adolescência, não há regra fixa de período de uso, mas é preciso ter equilíbrio. Proibir totalmente não é recomendado porque vivemos no século 21, então é preciso estar integrado à internet, que não é vilã — ela só é vilã quando vira o centro de tudo na vida do filho. Em quem acessa tecnologia demais, há uma reação orgânica semelhante ao uso de drogas, o que gera crise de abstinência, distúrbio de sono, birras exageradas. Mesmo quando for usar, isso não pode ser à noite porque a luminosidade da tela atrapalha o sono.

Há três motivos principais para limitar o tempo de acesso. O primeiro é o ócio criativo: a gente orienta que a criança saia das mídias para poder ir “fazer nada” no parque, no campo, no clube. O segundo é a velocidade de informações por segundo na internet: essa rapidez traz o sistema de recompensa, que faz perder a noção de que é preciso esperar para uma coisa acontecer. Isso deixa a criança intolerante, impulsiva e é preciso restringir para não virar um transtorno. Por último, é importante tirar os filhos das telas para que eles possam ler, pois a leitura, sem imagens ou sons, estimula a imaginação e a criatividade. O acesso a telas tem de ser supervisionado até os 18 anos, tanto o período de uso quanto o conteúdo: é muito fácil chegar a sites inadequados (com pornografia, pedofilia, estímulo ao suicídio e à automutilação, por exemplo). Ou o pai fica ali do lado ou instala programas próprios para barrar o acesso a temas inadequados em que se pode cair por acidente. Não recomendo que crianças tenham smartphone próprio antes dos 11 ou 12 anos. Depois disso, mesmo na adolescência, os pais precisam ter a senha.

Ana Márcia Guimarães Alves, pediatra, membro do Departamento Científico de Desenvolvimento e Comportamento da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP)

 

Três perguntas para

 

Ana Lúcia Durán, fonoaudióloga clínica e educacional, pós-graduada em psicomotricidade 

 
O uso de celular pode atrasar o desenvolvimento da fala?
Os aparelhos celulares e tablets têm sido utilizados indiscriminadamente como babás eletrônicas, e os prejuízos no desenvolvimento da linguagem são cada vez mais frequentes porque aprendemos por meio da interação, do contato e do afeto. Jogos e aplicativos, quando utilizados de forma inadequada, sem mediação e interação, não promovem intenção comunicativa e o vocabulário adquirido não é funcional, ou seja, muitas vezes observamos crianças que emitem palavras, falas de desenho, ou canções como se fossem um “eco”, apenas por repetição sem comunicar absolutamente nada.

O problema de atraso da fala só acontece em crianças de até 2 anos?
Os primeiros 1 mil dias da criança, que começam na vida intrauterina e vão até o fim do segundo ano, são considerados o “alicerce” para um bom desenvolvimento de fala e da linguagem. Especialmente nesse período, a interação com adultos e outras crianças é fundamental para que a linguagem receptiva (o que compreendemos) e expressiva (o que falamos) se desenvolva. Em geral, aos 2 anos, as dificuldades ficam muito evidentes porque é uma fase onde se espera que a criança tenha vocabulário suficiente para expressar desejos e necessidades e formar pequenas frases. Existem marcos para cada fase do desenvolvimento, e a falta de estimulação adequada pode causar prejuízos em qualquer etapa, observados mais tardiamente, por exemplo, na dificuldade de organizar e expressar os pensamentos, contar fatos e histórias, presença de trocas fonológicas não esperadas e dificuldades de aprendizagem.

Qual a importância do acompanhamento dos pais no acesso dos filhos à internet?
Vivemos em um mundo cercado pela tecnologia, utilizamos esses recursos com muita frequência e, uma vez que as crianças aprendem por imitação, é inevitável que o interesse pelo uso de tablets e celulares apareça cada vez mais precocemente. As empresas de tecnologia desenvolvem apps destinados para cada fase e não vejo problemas em que sejam utilizados, desde que com a mediação e a interação de um adulto, ou seja “vamos falar sobre o que estamos vendo no jogo ou no vídeo e trazer as informações para outras situações da vida diária”.

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