Luiz Calcagno
postado em 06/04/2018 06:00
;Agora, posso ser ;dona; Maria;, brinca Maria Pereira da Silva, 91 anos, ao comemorar a formatura no ensino médio. O pronome de tratamento, ela acredita, é reservado àqueles que fizeram por merecer. E dona Maria fez. Conseguiu terminar os estudos. Ganhou até um certificado de honra ao mérito pelo brilhante desempenho. No pé da página, a assinatura trêmula da titular da homenagem guarda, em cada traço curto, décadas de luta pela educação ; dela própria, dos alunos que alfabetizou (mesmo com a baixa escolaridade) no começo da vida, dos filhos, netos e bisnetos.
Apesar da idade e de tantas batalhas, gosta de uma boa prosa e conta à reportagem, num sofá da casa do neto, na 302 Norte, detalhes de sua trajetória. Dona Maria nasceu em 25 de setembro de 1926, em Martins, Rio Grande do Norte, onde se casou pela primeira vez e viveu até os 28 anos. O pai era agricultor, a mãe, uma varredora. A pequena Maria cursou até a terceira série do primário. ;Naquela época, estudar era muito mais difícil. Os mesmos e velhos livros eram passados para o irmão mais novo;, recorda.
Aos 28, em meados de 1954, já professora de alfabetização com apenas a terceira série, soube de um fazendeiro em Goiânia que procurava uma professora para seus funcionários, e decidiu ir atrás do emprego. Separou-se do marido, deixou uma filha na terra natal e partiu com outra filha no colo e um bebê na barriga, na boleia de um caminhão. ;Esse homem alugava o caminhão, e falou de um fazendeiro à procura de uma pessoa para dar aula em suas terras;, conta.
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Mas, depois de percorrer 2.030km, o fazendeiro se recusou a contratá-la devido à gravidez. ;Ele não me aceitou. Teve medo de que eu passasse mal longe da cidade;, recorda. ;Depois, foi muito difícil achar outro emprego. Ninguém me aceitava. Justamente pela gravidez;, completa. Lavou e passou roupas, e chegou a trabalhar até em uma fábrica de macarrão.
Mudou-se para Brasília em 1959 e guarda na memória a inauguração da cidade e, também, anos depois, o Golpe Militar de 1964. Casou-se novamente. Lavava roupas e trabalhava como passadeira para sobreviver. Lutava para que os filhos concluíssem os estudos. Nenhum deles cursou uma faculdade, infelizmente. E, aos 42 anos, em 1968, dona Maria voltou a estudar pela primeira vez. Fez até a quinta série do primário. ;Parei por vergonha. Achei que estivesse velha para isso;, admite. ;Meus filhos não chegaram a se formar, mas meus netos, sim. E meus bisnetos, também;, comemora.
Foco
O desejo de concluir o ensino médio surgiu em um almoço de família em 2016. Com 11 filhos, oito deles vivos, 34 netos, 48 bisnetos e três tataranetos, dona Maria, então com 89 anos, decidiu ;ir até o fim;. O neto, o empresário Adriano Stefanni, 37 anos, começou a provocá-la.
;A ideia foi dela. Eu só incentivei. Mas quando fui visitar minha tia que mora com ela, soube que estava contando para todo mundo na igreja que voltaria a estudar. Na mesma hora, vimos um local, fizemos a matrícula e compramos a apostila. Claro que ela disse que não ia dar tempo, que ia morrer antes, mas está aí. Alguns perguntam que benefício isso poderia trazer. ;Depois de um certo tempo, as pessoas se desmotivam;, alegavam. Mas ela, não! Ela nos ensina a acreditar que não há limites, que todos os dias podemos construir algo novo;, destaca.
Dona Maria teve dificuldades com o inglês, que ela admite, não conseguiu ;aprender muito;, e com matemática, ;que era muito diferente do meu tempo. Com a gente, era só a tabuada;, sorri. Mas, uma neta que é professora e outra que é universitária estudaram com ela e toda a família se mobilizou para apoiá-la. Filha de dona Maria, Francisca de Assis da Silva, 66 anos, lembra que a idosa chegava no supletivo antes dos professores. ;Ela me esperava no portão de casa, reclamando que ia se atrasar;, revela.
Emoção
Francisca mudou a agenda na igreja que frequenta, no Recanto das Emas, para acompanhar a mãe. ;Ela é muito ativa. Faz bordado. Vai ao Taguacenter, em Taguatinga Norte, sozinha para comprar o material. As pessoas que encontramos se emocionam, choram ao saber que ela acabou de concluir os estudos. Eu tenho muito orgulho. Acho que nossa ficha ainda não caiu. Estamos muito emocionados;, declara a filha.
Dona Maria ainda não terminou os estudos. ;Hoje, só não estuda quem não quer;, garante. O plano, agora, é fazer um curso superior. Mais uma vez, ela afirma, sem medos ou dramas, que não sabe se conseguirá terminar. ;A morte anda do nosso lado 24 horas por dia. Temos que nos acostumar. Não dá para ficar sofrendo;, ensina. A meta é fazer uma faculdade de teologia. ;Sou evangélica e isso me ajudará muito com a minha religião;, afirma. O importante é seguir adiante...
"Hoje, só não estuda quem não quer;
Dona Maria Pereira da Silva
"Ela é muito ativa. Faz bordado. As pessoas que encontramos se emocionam, choram ao saber que ela acabou de concluir os estudos"
Francisca de Assis, filha