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Startup de intercâmbio é acusada de golpe por estudantes e ex-funcionários

Programa oferecia, supostamente, bolsas para jovens de baixa renda de todo o Brasil. Proprietário teria arrecadado mais de R$ 60 mil com inscrições, mas nunca divulgou lista de aprovados nem enviou ninguém para o exterior

Thays Martins
postado em 16/01/2019 18:59
Ganhar uma bolsa com tudo pago para estudar fora é bem atrativo. Foi na tentativa de realizar esse sonho que 2.500 pessoas teriam se inscrito no programa da startup O Bolsista, que funcionava em São Paulo e prometia intercâmbios gratuitos para jovens de baixa renda em destinos das Américas do Sul (Argentina e Chile) e do Norte (Canadá). O edital, de agosto de 2018, ofertava 500 vagas e parecia sério, sendo composto por etapas como uma prova on-line.
O processo de inscrição solicitava diversos dados pessoais e exigia o pagamento de uma taxa de R$ 90 (ou de R$ 45, quando a pessoa era inscrita no Cadastro Único do governo federal). No entanto, até o momento, ninguém foi convocado para fazer intercâmbio. Estudantes temem ter sido enganados. A desconfiança de que tudo se tratou de uma fraude aumentou quando o site da empresa e da seleção saíram do ar, na terça-feira (15), o mesmo dia em que os resultados da seleção de intercâmbio deveriam ter sido divulgados. Um grupo de WhatsApp reúne pelo menos 200 jovens que se sentem lesados.
Candidatos reclamam da falta de esclarecimento quanto ao resultado
Thiago Santos, 23 anos, aluno de medicina na Universidade Federal do Paraná (UFPR), sente que caiu em um golpe. "Parecia bem sério. Tinha CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica), eu acreditava que tinha credibilidade. Agora nem estou mais preocupado com o dinheiro. Tive de passar meus dados que podem ser utilizados para futuras fraudes", reclama. "Eu desconfiei depois de alguns problemas que ocorreram na prova. Muitas pessoas estão se sentindo lesadas, até porque é o sonho de muita gente fazer um intercâmbio, ainda mais gratuito", afirma um aluno de biologia da Universidade de Brasília (UnB) que prefere não revelar o nome.


Confusão on-line

Na página do Facebook da empresa, candidatos começaram, então, a reclamar de fraude. No Instagram da empresa, o proprietário da startup O Bolsista, Elizeu Roberto Cândido, se manifestou por meio de um storie, afirmando que o site teria sido alvo de ataque de um homem mal-intencionado chamado Noha. Na ocasião, Elizeu divulgou um número de telefone que pertenceria a Noha. Em post do Facebook, a startup reafirmou que a lista só não está no ar por causa disso.

"Ontem a empresa Subiu a lista dos aprovados da OBolsista Brasil, porém, uma pessoa intitulado Noha em um grupo de whatsapp resolveu deliberadamente tirar o site do ar. por um comando direto no link. Desta forma, estamos retornando o site ao ar e também tomando as medidas necessitarias", prometeu a página na terça-feira (15). A equipe do Eu, Estudante ligou para esse contato. O homem que atendeu, Noha Silva, afirmou acreditar que o site da startup O Bolsista saiu do ar pela grande quantidade de acessos, não por qualquer ação dele. Storie em que O Bolsista se diz vítima de hacker
Noha também relatou que se inscreveu no processo seletivo e sabe de pessoas que foram bastante prejudicadas. "Vi caso de candidatos que deixaram de fazer concurso público no dia para fazer essa prova, teve gente que pegou até dinheiro emprestado..." Ao acessar o site de O Bolsista, na terça-feira (15), Noha diz ter deparado com um PDF de duas páginas totalmente em branco, sem nome algum. Depois que Elizeu divulgou o telefone de Noha, internautas questionaram o porquê disso, pois essa exposição poderia trazer problemas para o candidato. Em resposta, o perfil de O Bolsista no Facebook afirmou que ele pode se sentir livre para processar a empresa. Também na terça-feira (15), Elizeu fez uma live em seu perfil no Instagram.
Durante a transmissão, ele solicitou que os espectadores enviassem o nome por mensagem para checar se constava na lista de aprovados. À medida que recebia os dados, Elizeu aparecia supostamente verificando nome por nome, afirmando que alguns tinham passado. Houve um momento em que ele começou a anunciar nomes de pessoas que teriam sido aprovadas na seleção até que, de acordo com ele, o notebook que estava usando para a checagem descarregou. No entanto, no vídeo, só era possível ver o rosto dele. Uma lista completa de aprovados nunca chegou a ser divulgada.

Problemas internos são antigos

Uma ex-funcionária de O Bolsista que preferiu não se identificar contou que, pelo WhatsApp, Elizeu teria dito a ela que pretendia divulgar 500 nomes falsos, apenas para ludibriar a acalmar os inscritos ; sugerindo que não pretendia enviar nenhum bolsista ao exterior de fato. Essa mesma ex-empregada, que trabalhava no marketing da empresa, informou à equipe da reportagem que, ao todo, teriam sido 2.500 inscritos, dos quais 1.000 pagaram taxa de R$ 90, e 1.500 desembolsaram R$ 45. Dessa maneira, as inscrições teriam gerado R$ 67.590 de ganhos para Elizeu.
Segundo a ex-colaboradora de marketing, todos os empregados de Elizeu também se sentem prejudicados, lidavam com salários atrasados há tempos e pararam de ser pagos em novembro. Então, toda a equipe, um total de cinco pessoas, deixou a instituição em dezembro. Agora, nem mesmo os ex-colaboradores conseguem contatar o proprietário da empresa. ;Nossa última esperança de pagamento era para ontem. Segunda-feira passei mal por ansiedade;, relata a ex-colaboradora da área de Marketing. Ela conta que quando falava em denunciá-lo, Elizeu rebatia dizendo que não a pagaria.
;Ele é muito manipulador;, afirma. Outra ex-funcionária, de atendimento, corrobora a história. ;Prestei serviços para O Bolsista de setembro a dezembro de 2018. Infelizmente, hoje posso afirmar que a empresa não passa de um golpe, uma maneira que o dono achou de ganhar dinheiro. Até hoje espero receber o pagamento dos meses de novembro e dezembro, porém já não tenho mais esperanças, pois o Elizeu trocou de número, me bloqueou no WhatsApp, não atende minhas ligações, nem e-mails;, diz.
A ex-colaboradora afirmou que, apesar de a suspeita ser mais antiga, só teve certeza de que se tratava de uma fraude na última quinta-feira (10), quando a TestWe, empresa responsável pela aplicação das provas on-line do processo seletivo, entrou em contato e reclamou de não ter recebido qualquer pagamento (saiba mais em "Provas não chegaram a ser corrigidas"). A professora de português Mariana Galizi, contratada para fazer lives tirando dúvidas de candidatos e para corrigir as redações do processo seletivo, também não foi totalmente paga e não consegue mais contato com o Elizeu. ;Eu tinha um pé atrás, mas precisava trabalhar. Ele mudou todos os números. Semana passada, ligou e disse que me pagaria, mas não retornou mais meus contatos", diz.
"Ontem ele fez uma live, que só deixou claro o tamanho da insanidade dele. Mandei mensagem, dizendo que estava assistindo e ele não me respondeu", completou. Na live no Instagram, segundo Mariana, Elizeu teria afirmado que viajaria. Ela desconfia de que ele pretende se livrar dos problemas fugindo do país. Sobre as correções, a professora de português conta que chegou a fazer as do primeiro dia de prova, um total de 300 redações, mas nunca recebeu as avaliações do segundo dia. ;Eu escutei que ele teve um lucro de mais de R$ 100 mil. Eu só queria que ele fosse para a cadeia", desabafa. A professora pediu que o empresário exclua os vídeos na página da empresa em que ela aparece, mas não foi atendida.

Sem respostas

O Eu, Estudante ligou para três números de telefone que seriam de Elizeu, passados por ex-funcionários. Em uma das ocasiões, uma pessoa atendeu e afirmou que aquele celular não era dele. As outras duas tentativas caíram na caixa de mensagens. A reportagem também enviou um e-mail para endereço eletrônico que constava no registro de abertura da empresa, de 5 de fevereiro de 2018, e enviou mensagem para a página da empresa no Facebook e para o perfil de Elizeu no Instagram ; sem obter qualquer tipo de resposta.
Contatada pelo Correio, a Fundação Procon-SP afirmou que ainda não recebeu nenhuma denúncia contra a startup O Bolsista. Em 16 de agosto de 2018, a equipe do Eu, Estudante recebeu um release, enviado pela própria startup, solicitando divulgação do edital. Assim como outros veículos de comunicação, o site de educação do Correio publicou nota sobre a seleção.

Processo seletivo iniciou em agosto

A startup O Bolsista está registrada como uma empresa individual no nome de Elizeu Roberto Cândido desde fevereiro de 2018. No site, ele conta que a criou para ser ;uma empresa que atendesse a demanda de jovens com condições econômicas inferiores, para dar a eles a oportunidade de uma experiência internacional sem custos, promovendo além da educação, o crescimento intelectual e contato cultural mais abrangente;. A oferta de bolsas de intercâmbio por meio de processo seletivo teve início em agosto.
O edital estabelecia que, para se inscrever, era necessário que o interessado tivesse ensino médio completo, renda familiar de no máximo três salários mínimos, além de idade mínima de 17 anos e 11 meses de idade até 1; de dezembro de 2018. Após o preenchimento do formulário, o sistema gerava boleto para pagamento da taxa de inscrição. A prova on-line estava marcada para 17 de novembro, mas foi adiada, sendo aplicada de fato em 2 e em 9 de dezembro.
Post no Instagram anunciava o resultado para terça-feira (15)
Eram 100 questão englobando as mesmas disciplinas cobradas no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem): matemática e suas tecnologias; ciências humanas e suas tecnologias; ciências da natureza e suas tecnologias; e linguagens e códigos e suas tecnologias; além de redação. Os inscritos tiveram sete horas para resolver o teste. Depois disso, os gabaritos chegaram a ser divulgados, alimentando a expectativa dos candidatos.

Provas não chegaram a ser corrigidas

Em comunicado, a empresa responsável pela aplicação das provas, a plataforma de testes on-line TestWe, informou que foi contratada apenas para promover o teste e corrigir as questões objetivas. No entanto, não terminaram o processo de correção por falta de pagamento tanto da própria TestWe quanto da professora Mariana Galizi. ;A correção da redação seria feita por O Bolsista, mas eles não pagaram o professor, então nada foi terminado;, afirmou um colaborador. Confira nota enviada por e-mail na íntegra:
;Dentro da nossa responsabilidade, realizamos todos os procedimentos cabíveis para que os candidatos pudessem realizar as suas provas. Após a realização, recebemos as cópias das provas de todos os candidatos que a realizaram. Devido a questões de absentismo do elaborador do concurso de O Bolsista, as provas ainda não possuem correção nem as devidas pontuações, que é de total e exclusiva responsabilidade do elaborador do concurso. Apesar dos e-mails e contatos recebidos, informamos que é de total e exclusiva responsabilidade do realizador do concurso a divulgação dos resultados assim como a lista de aprovados. A TestWe e muitas outras pessoas que trabalharam em O Bolsista ou pelo programa não foram pagos, então nós também estamos pensando em uma suspeita de fraude. Tentamos contatar a startup há alguns meses sem sucesso.;

Outros fornecedores sem pagamento

Representante da agência de turismo contratada para organizar a viagem dos bolsistas que seriam selecionados conta que recebeu parte do dinheiro, mas há faturas em aberto. Ela diz se sentir perdida e acreditar que a fraude não foi planejada desde o início. "Acredito que a intenção não foi dar golpe nas pessoas, tanto é que, quando ele nos mostrou o projeto, acreditamos nele e gostamos muito do intuito. Em algum momento, ele deve ter se perdido no meio do caminho;, diz. ;Acho que não soube lidar com isso, ficou achando que o dinheiro que entrava fosse dele... E acabou virando uma bola de neve;, supõe.
;No momento, com toda essa situação, acredito que acabou sendo uma fraude, sim! Ontem, ao assistir um pouco da live do Elizeu, tive a impressão de que ele não sabia o que estava fazendo. Mas ele fez as pessoas acreditarem que realmente vão viajar, sendo que não vão, não agora, não assim, não com a gente...", finalizou. Outra prestadora de serviços, um espaço de coworking onde a equipe de O Bolsista trabalhava, também não chegou a ser paga. Os responsáveis preferiram não falar com a reportagem. ;Não temos interesse em dar entrevista neste momento. Expor nossa marca, relacionando-a a O Bolsista, não será bom para nossos negócios", afirmou um representante da empresa.

*Estagiária sob supervisão da subeditora Ana Paula Lisboa

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