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Reality de gastronomia na escola engaja alunos da EJA no Paranoá

Para engajar alunos da educação de jovens e adultos de colégio público no Paranoá, professor criou projeto multidisciplinar nos moldes do MasterChef. Retornar à sala de aula depois de anos é um desafio, e a iniciativa foi uma maneira de motivar estudantes que trabalham e estudam

Isadora Martins*
postado em 21/05/2019 14:00
Quem diria que um reality show de culinária poderia inspirar um projeto escolar? O professor de português da Secretaria de Estado de Educação (SEE-DF) desde 2014 Ênio César de Moraes teve a ideia de replicar uma versão do MasterChef, exibido nos canais Band e no Discovery Home & Health, no Centro de Ensino Fundamental (CEF) 3 do Paranoá, onde funcionam classes da EJA (Educação de Jovens e Adultos) e do ensino regular. Cada turma ficou responsável por criar um restaurante com pratos típicos de uma região ou unidade da Federação. A tarefa dos estudantes não parou por aí: divididos em equipes, eles tiveram de ornamentar a sala de aula, recepcionar convidados, apresentar a origem da receita, pesquisar os valores nutricionais e elaborar um slogan para o estabelecimento. A exposição do trabalho ocorreu no último dia 7.
Estudantes da 5ª série com professores
Graduado em letras pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub) e mestre em educação pela Universidade Católica de Brasília (UCB), Ênio explica que o objetivo do projeto multidisciplinar é tornar a escola e os professores mais próximos dos alunos. ;A iniciativa surgiu da necessidade de trazer algo que faça parte do cotidiano dos estudantes. O MasterChef é um programa famoso que tem relação com comida. E comida é sempre interessante;, brinca ele, que também é coordenador do ensino médio do Colégio Presbiteriano Mackenzie. ;Na EJA, principalmente, nós temos muitas pessoas que trabalham como domésticas e cozinheiras. Então, a ideia veio disso. É algo que elas dominam, e isso ficou nítido na apresentação do trabalho;, completa. Ainda de acordo com o professor de língua portuguesa, o MasterChEF03 permite que os alunos apliquem, na prática, o conhecimento adquirido em todas as disciplinas.
Alunos servem pratos aos jurados professores
Bobó decamarãopreparadopor alunos
;Em ciências, por exemplo, eles estudaram valor nutricional. Em inglês, tiveram que traduzir a receita. Cada componente entrou com um pouquinho;, diz. Na avaliação da supervisora pedagógica do CEF, Ely Vieira de Sales, o projeto contribuiu para que os alunos se considerassem valorizados na instituição. ;Eles se sentem pertencentes à escola. Os estudantes da EJA costumam chegar descrentes de si, acham que não podem mais aprender e que não sabem de nada. Depois do projeto baseado no MasterChef, eles passaram a se ver como verdadeiramente são: muito importantes e capazes de aprender e, principalmente, ensinar;, diz. Ely destaca que a iniciativa também foi uma oportunidade para jovens e adultos se unirem e trabalharem em equipe. Participaram do projeto 480 alunos, sendo 300 das classes de adultos.

Incentivo da família

O pedreiro Berto Pereira, 31 anos, voltou a estudar este ano. Ele conta que não tinha vontade de retornar à escola porque estava há 16 anos afastado. ;Eu parei por problemas de família. Minha mãe teve dois AVCs e precisei ajudar meu pai a cuidar dos meus irmãos porque sou o mais velho;, conta. Quem incentivou o piauiense a tentar mais uma vez a escola foi a esposa dele. ;Minha mulher é professora. Eu me inspirei nela para recomeçar os estudos e estou gostando muito;, diz. Berto sentiu muita diferença entre o colégio que frequentou no Nordeste e o centro de ensino do Paranoá. ;Eu aprendi a ler muito pouco. Na roça, eu tinha só quatro matérias. Aqui, tenho sete. Senti um pouco de dificuldade;, afirma.
De acordo com o estudante, inglês é o principal desafio, porque é o primeiro contato dele com o idioma. O pedreiro tem uma rotina puxada: trabalha das 7h às 17h; depois vai direto para a aula. ;É um pouco difícil. O serviço braçal da construção civil é pesado. Às vezes, chego à sala dolorido e cansado;, conta. No entanto, para Berto, o esforço vale a pena: ;É um desafio que precisamos enfrentar;. O piauiense gostou muito de participar do MasterChEF03. Ele ficou responsável pela ornamentação da sala da 5; série A, que preparou um baião de dois. ;Eu adorei a experiência. Aprendi muito e me aproximei dos meus colegas;, diz. ;Nunca tinha feito nada relacionado a decoração. Foi muito legal ter contato com essa área;, completa.

Projeto de destaque

O MasterChEF03 superou as expectativas de alunos e professores. A estudante Ana Maria Costa, 20 anos, conta que, no início, não acreditava que o trabalho seria o sucesso que foi. ;Antes, parecia que poucos estavam participando. Mas, quando chegou o dia, todo mundo se ajudou e trabalhou;, afirma. Para Ana Maria, fazer o projeto foi uma experiência divertida. ;A gente se reuniu com os colegas e fez coisas diferentes. Não foi a mesma rotina de todas as aulas;, explica.
;Não imaginávamos que a iniciativa fosse chegar a esse nível de conhecimento, trabalho e esforço. Foi um projeto muito importante;, afirma a coordenadora pedagógica do CEF, Silvana Moura. De acordo com a educadora, de todos os trabalhos desenvolvidos na escola, esse foi a maior e mais bem-aceito pelos alunos. O idealizador do MasterChEF03, Ênio, também revelou estar satisfeito com o resultado: ;Fico muito feliz, porque o projeto funcionou e cumpriu o objetivo. Já fica o desafio para o próximo semestre;.

Paixão por aprender

Luiza de Sousa, 73 anos, ajudou a preparar o bobó de camarão da 6; série A, turma que representava a Bahia. Ela resume o projeto em uma palavra: ;lindo;. A cearense estuda no formato da EJA do Paranoá há três anos e é uma aluna exemplar ; só perde aula para tocar teclado na missa. ;Estou aqui para aprender. Se eu não tiver mais idade para me formar e arrumar emprego, pelo menos vou ter mais conhecimentos;, diz. A trajetória de dona Luiza nos estudos foi complicada. Ela começou a frequentar a escola aos 18 anos, no Ceará, mas teve de abandonar dois meses depois. ;Eu precisava trabalhar na roça e ajudar minha mãe a cuidar dos meus irmãos porque meu pai viajava muito;, conta. Aos 24 anos, Luiza veio para Brasília em busca de melhores condições de vida. Na época, trabalhava como doméstica e foi incentivada pela patroa a retomar os estudos.

;Eu era muito boa. Estava no fim da 3; série e tinha as quatro operações de matemática na cabeça;, comenta, orgulhosa. Um ano depois, no entanto, teve de largar a escola mais uma vez. ;Meu irmão chegou a Brasília e disse que, quando minha mãe e meu pai recebiam cartas minhas no Ceará, eles choravam;, conta. Ela decidiu, então, passar um tempo na terra natal com a família, mas retornou à capital federal um ano e meio depois. ;A vida no Nordeste era complicada. Eu trabalhava na roça, costurava e ainda tocava nas festinhas. Decidi voltar para Brasília;, explica. Por aqui, durante os anos em que foi casada, era difícil estudar: o companheiro não gostava. Dona Luiza teve duas filhas ; Anne, 40 anos, e Rejane, 35. Depois que ela se separou, a mais nova incentivou a mãe a estudar novamente.
Restaurantes estudantis serviram pratos de várias regiões do país
;Um dia, minha filha me ligou e falou: ;A senhora vai voltar à escola;. Eu disse que não tinha mais idade para isso. Ela disse que seria bom para eu arejar a cabeça e conhecer pessoas diferentes;, comenta. ;Comecei e estou aqui até hoje. Enquanto Deus me der vida, vou continuar;, completa. Além de estudar, Luiza se engaja em ações na Paróquia Santa Maria dos Pobres, no Paranoá, costura e vende de cosméticos a artigos de decoração. ;Eu faço muita coisa. Não paro!”, diz. A cearense também é craque na cozinha, motivo pelo qual não teve dificuldades em ajudar a preparar o bobó. ;Eu já cozinhei para deputado e senador. Uma vez, fiz uma receita que foi parar em São Paulo;, conta. Dona Luiza é a aluna mais velha da turma e sempre incentiva os colegas a estudarem: ;Quero ver todo mundo se formar. Sou como a mãe da turma. Os outros alunos dizem que se inspiram em mim;.
Inscrições do Encceja começam amanhã

Quem deseja fazer o Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja) pode fazer a inscrição a partir desta segunda-feira (20) no site enccejanacional.inep.gov.br. As provas serão aplicadas em 25 de agosto. O exame é uma oportunidade para jovens que não concluíram os estudos na idade apropriada tirarem certificado de conclusão do ensino fundamental e do ensino médio.

Palavra de especilista

Metodologias ativas


Quanto mais atividades baseadas na realidade dos alunos forem desenvolvidas nas escolas, melhor será o rendimento deles. Isso serve tanto para a EJA quanto para o ensino regular. O aprendizado baseado em metodologias ativas (desafiando os estudantes a resolverem problemas do cotidiano) traz muitos resultados e desperta o interesse dos alunos. Esses casos práticos, como projetos e jogos educacionais, têm sido muito utilizados. São uma forma, inclusive, de reduzir as taxas de evasão nas classes de EJA.
Remi Castioni, professor daFaculdade de Educação daUniversidade de Brasília (UnB),ex-membro do Fórum Nacional de Educação (FNE), graduado em ciências econômicas pela Universidade de Caxias do Sul (UCS), doutor em educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

Matrículas na EjaJA


BRASIL
Total: 3,5 milhões
Ensino fundamental: 2,1 milhões
Ensino médio: 1,4 milhão


DISTRITO FEDERAL
Total: 50,4 mil
Ensino fundamental: 27 mil
Ensino médio: 23,4 mil


Fonte: Censo da Educação Básica de 2018 / Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira


*Estagiária sob a supervisão da subeditora Ana Paula Lisboa

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