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Da dor à revolta: moradores clamam por justiça

Na tarde de ontem, gritos de cobrança interromperam a entrevista coletiva do delegado da cidade, que prometeu cortar na própria carne. Segundo as investigações, uma série de irregularidades causaram o incêndio na boate Kiss, no último domingo

postado em 30/01/2013 11:07
Moradores da cidade e estudantes da Universidade Federal de Santa Maria cercaram a delegacia com cartazes. %u201CTá vendo? A cidade está pedindo justiça%u201D, comentou o delegado ao ver o protesto (Carlos Vieira/CB/D.A Press )
Moradores da cidade e estudantes da Universidade Federal de Santa Maria cercaram a delegacia com cartazes. Tá vendo? A cidade está pedindo justiça, comentou o delegado ao ver o protesto

Santa Maria (RS) ; Na tarde de ontem, a cidade gritou. Eram 17h50 quando o delegado Marcelo Arigony, com uma contundência diferente dos dias anteriores, respondia a última pergunta da coletiva de imprensa. Já havia relatado o festival de irregularidades da boate Kiss, a irresponsabilidade dos músicos da banda Gurizada Fandangueira, que não compraram fogos específicos para locais fechados porque eram mais caros, e também confirmado que seguranças da boate já espancaram jovens em 2011. O delegado gesticulava e falava alto. Ao lado, dois promotores de Justiça. ;Não adianta. Vamos investigar todo mundo. Bombeiros e prefeitura vão ser investigados sim. Vamos cortar na própria carne. Uma criança sabe que aquela casa não poderia funcionar.; Antes mesmo de acabar a frase, o grito longe de uma multidão o assustou. A entrevista foi interrompida. Justiça, a palavra mais repetida desde domingo, chegou mais perto. O som que vinha de fora fez 30 repórteres descer correndo as escadas para ver o que estava acontecendo lá embaixo. Era Santa Maria berrando no ouvido das autoridades que queria todos os culpados na cadeia. Só deu tempo de o delegado apontar para a janela e falar para os jornalistas. ;Tá vendo? A cidade está pedindo justiça.;


[SAIBAMAIS]Na rua, a população exibia cartazes e repetia o mantra de uma palavra só. Com um megafone, um estudante que perdeu vários amigos cobrou punição aos agentes públicos que erraram ao liberar o funcionamento do espaço. ;Atenção investigadores, não queremos só a prisão dos sócios da boate, dos seguranças ou dos músicos. Quem não fiscalizou ou liberou de qualquer jeito tem que pagar.; Após cinco minutos de cobranças públicas, Arigony desceu as escadas. Antes tirou o paletó. Entrou no meio da manifestação, pegou o megafone do estudante emprestado e pediu para falar. Não conseguiu dizer tudo. Falou apenas que os culpados seriam responsabilizados. Em seguida, a resposta de que a ;Justiça seria feita; ficou pela metade. Na frente de todos, o investigador chorou. Naquele momento, uma instituição, a Polícia Civil, assinou o recibo de que não poderia falhar. O delegado entregou o equipamento de volta e retornou ao prédio da Delegacia Regional de Santa Maria.


Depoimentos
Antes, aos jornalistas, concedeu a entrevista mais forte desde o dia da tragédia. Informou, com base no depoimento de 44 testemunhas, o que o mundo inteiro já sabe: a boate Kiss é o reino das irregularidades. O delegado declarou que, com base em provas testemunhais, existem indícios de que os extintores da casa noturna eram falsificados ou estavam vencidos. ;Algumas pessoas ouvidas relataram que os equipamentos não funcionavam. Outras afirmaram que os extintores foram comprados por um preço muito baixo, o que indica falsificação.; Arigony informou que os donos do estabelecimento fizeram reformas internas sem comunicar aos órgãos competentes.

A investigação até o momento apontou que, ao contrário do que o Corpo de Bombeiros afirmou, a porta de saída era muito estreita. ;Ela não tinha tamanho suficiente para dar vazão ao público em situação de tumulto;, ressaltou o investigador. As provas testemunhais colhidas até o momento mostram que a espuma utilizada no teto era irregular. ;Este material nem faz isolamento acústico, apenas evita eco e é inflamável. Pode ter produzido o gás tóxico;, afirmou.

O delegado atestou que o alvará concedido pelos Bombeiros estava vencido desde 10 de agosto e o sanitário, desde 31 de março. ;O inquérito policial é uma peça informativa. O que garanto é que vamos colocar todas as informações. Se houve falha nas fiscalizações, os agentes públicos serão responsabilizados.; Após realização de três perícias técnicas, a polícia informou que não havia sistema de iluminação de emergência. ;A boate não tinha iluminação para crise. As pessoas podem ter corrido para o banheiro ao ver a luz ligada lá, achando que era uma saída de emergência e acabaram morrendo asfixiadas.;

Fogos baratos
A Polícia Civil descobriu que os fogos utilizados pela banda Gurizada Fandangueira, que teria provocado o incêndio, eram específicos para ser utilizados em espaços abertos. Os investigadores localizaram o vendedor do produto. Ele contou que ofereceu fogos apropriados para ambientes fechados. Os músicos não quiseram porque eles custavam R$ 70. Preferiram comprar os de R$ 2,50.

Promotores do Ministério Público do Rio Grande do Sul informaram que os agentes públicos podem ser responsabilizados por improbidade administrativa. ;Não temos ainda as provas concluídas para dizer onde houve a falha. Os trabalhos poderão apontar se houve falha da prefeitura, falta de fiscalização ou se o poder público agiu à revelia e se, até mesmo, contribuiu para a tragédia;, afirmou o promotor Cesar Augusto Carlan. O órgão confirmou também que um dos sócios da casa noturna responde a processo por lesão corporal grave. Em 2011, jovens clientes da Kiss foram espancados por seguranças, sendo que um deles ficou com o cotovelo quebrado. Um dos donos foi responsabilizado.

Festival de erros
Com base no depoimento de 44 pessoas, a Polícia Civil encontrou diversos problemas:
; Extintores
Há forte indício de que estariam vencidos ou eram falsificados. A polícia descobriu que a boate comprou os equipamentos a um preço muito barato, o que reforça a tese de falsificação. Funcionários revelaram que alguns equipamentos não funcionavam
; Reformas internas
Os proprietários da boate realizaram uma série de reformas sem comunicar aos órgãos fiscalizadores: Prefeitura de Santa Maria e Corpo de Bombeiros.
; Porta de saída
Ao contrário do que afirma o Corpo de Bombeiros, a Polícia Civil informou que a porta não tinha o tamanho suficiente para dar vazão ao público em situação de tumulto.
; Isolamento no teto
A espuma comprada pela boate não fazia o isolamento acústico. Servia apenas para evitar o eco. Não seguia os padrões estabelecidos e, ao ser queimada, produzia um gás extremamente tóxico
; Iluminação de emergência
Não foram encontrados sistemas de iluminação de emergência. Só havia iluminação no banheiro. Muita gente achou que era a saída de emergência e acabou morrendo asfixiada.
; Alvarás
O alvará concedido pelo Corpo de Bombeiros mediante apresentação de um projeto de Prevenção à Incêndio estava vencido desde 10 de agosto de 2012. O alvará sanitário estava vencido desde 31 de março.
; Processo
Um dos donos da Kiss responde a processo por lesão corporal grave. O Ministério Público informou que, em 2011, seguranças espancaram jovens na casa noturna, e o dono foi responsabilizado.
; Fogos
Os fogos utilizados pela banda Gurizada Fandangueira eram específicos para locais abertos. Os músicos compraram porque era mais barato ; apenas R$ 2,50. Os fogos para locais fechados foram oferecidos à banda pelo vendedor, localizado pela polícia, mas era mais caro, cerca de R$ 70.

;Vamos investigar todo mundo. Bombeiros e prefeitura vão ser investigados sim. Vamos cortar na própria carne. Uma criança sabe que aquela casa não poderia funcionar;
Marcelo Arigony, responsável pela Delegacia Regional de Santa Maria

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