Jornal Correio Braziliense

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Brasília perde a cor

Glênio Bianchetti morre aos 86 anos, um dos artistas mais completos do país

No ateliê de Glênio Bianchetti, um mezanino na casa projetada pelo filho no Setor de Mansões Norte, a luz natural que banha o cavalete tem papel de acabamento para o intenso colorido das pinturas do artista. Um colorido que é marca das telas, mas também do sorriso sempre disposto de Bianchetti e que se apagou na noite de segunda-feira. O artista morreu por volta das 23h, aos 86 anos, em consequência de uma hemorragia provocada por um cataterismo. Ele passou pelo procedimento ; exame invasivo que investiga as veias que levam ao coração ; na última sexta-feira e voltou para casa logo depois.

Na segunda, por volta do meio dia, sentiu-se mal e retornou ao Hospital Santa Lúcia, na Asa Sul. Foi internado na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e morreu no fim da noite. O corpo será cremado em uma cerimônia íntima aberta apenas à família.

Nascido em Bagé, em janeiro de 1928, Glênio Bianchetti chegou a Brasília no início da década de 1960 para dar aulas na então recém-inaugurada Universidade de Brasília (UnB). Ele contava que lá no Sul ouvira falar de uma experiência incrível no Planalto Central, uma universidade na qual a vanguarda e a utopia andariam de mãos dadas.

Com a esposa, Ailema, artista e arte-educadora, tomou o rumo do Centro-Oeste. Alto, bonito e corpulento, Glênio assumiu o ateliê de pintura. Em Brasília, suas telas ganharam novos contornos. A luz dourada e direta do Planalto Central intensificou o colorismo, mas a temática afetuosamente voltada para a gente e os hábitos brasileiros continuaram. ;Para mim, cor é luz, e luz é vida;, dizia. Aos poucos, ele trocou a o tecido da tela pela madeira bruta. E se fixou no cerrado.

Coerência
Herdeiro fundador do Clube da Gravura de Bagé, grupo engajado na inserção de temas sociais na arte brasileira, Glênio sempre manteve extrema coerência artística e ideológica. O sonho de protagonizar um ensino em um ambiente ocupado pela nata da vanguarda artística brasileira ; Athos Bulcão, Alfredo Ceschiatti, Luiz Humberto e Ana Mae Barbosa passaram por lá ; ficou de pé até 1965, quando um grupo de professores pediu demissão após se ver cerceado pelas imposições da ditadura militar.

O gaúcho deixou a universidade e foi ser artista em tempo integral. Mas a vocação para dialogar com o outro, a generosidade e o fascínio pelo ser humano transformaram o ateliê e o apartamento na 305 Sul em uma extensão da sala de aula.

Há toda uma geração de artistas da cidade formada sob o olhar de Glênio Bianchetti e Ailema. Não se pode dissociar um do outro: o casal, que completou 62 anos de casamento em janeiro, era abrigo intelectual e afetivo da classe artística brasiliense. Quando veio a reintegração à UnB, a universidade havia mudado bastante. Mas Glênio Bianchetti não. Coerente, socialmente engajado, tímido e agregador, o pai de seis filhos e avô de 16 netos continuou a traçar seu compromisso com a arte e a vida, pontuado pelo afeto familiar, pela proximidade com os amigos e por um olhar delicado e encantado para com o mundo.