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Um resgate para o futuro

Durante 32 meses, comissão criada pela UnB investigou violações cometidas contra estudantes e professores durante a ditadura militar. Ao restaurar essa memória recente, os docentes esperam discutir um legado para as novas gerações

postado em 23/04/2015 10:53


Integrantes da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade apresentaram ontem o resultado da investigação: repressão permanente  (Isa Lima/UnB Agência)

Integrantes da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade apresentaram ontem o resultado da investigação: repressão permanente


Ao completar 53 anos de criação, a Universidade de Brasília rediscute os momentos mais duros da trajetória da instituição. Isso porque a entrega do relatório final da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade (CATVM ; UnB) joga luz sobre as violações de direitos humanos e individuais cometidas contra estudantes e professores durante a ditadura militar. O documento indica a existência de uma repressão permanente na instituição, não apenas em períodos específicos, como se acreditou até então. Além disso, o relatório funciona como primeiro passo para uma pesquisa mais aprofundada dos efeitos do regime militar no ambiente universitário e abre caminhos para a reparação dos crimes cometidos.

Em cerimônia, no Auditório da Reitoria, na manhã de ontem, foram expostos os 32 meses de trabalho da comissão. A equipe realizou a oitiva de 45 depoentes, em audiências públicas e entrevistas reservadas. Também foram analisados documentos do Arquivo Nacional, do Arquivo Público do Distrito Federal e dos registros da ditadura, como os arquivos do Serviço Nacional de Informações (SNI) e reportagens da época. Ao reunir acervos e cruzar informações, chegou-se à conclusão de que as violações foram prática sistematicamente enquanto vigorou o regime.

Ocorreram monitoramentos, prisões, torturas, expulsões de docentes e estudantes da universidade e desaparecimentos, executadas por agentes ligados ao Estado. Dessa conclusão, chega-se ao questionamento de que caminho a universidade vai seguir. Uma vez que os atos cometidos afastaram a instituição, fundada pouco antes do golpe de 1964, da proposta pensada por Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro, como eles serão tratados pelas novas gerações é a pergunta que se coloca, de acordo com um dos membros da comissão, professor Luis Humberto. ;A comissão tem papel de restauração da memória. Nós não trabalhamos só no presente para restaurar a triste memória de um passado recente. Nós constituímos um legado para o futuro;, afirma.

Para Humberto, mais do que um golpe político, a ditadura foi um golpe contra a inteligência de um país. ;Tem pessoas que dizem: ;Ah, deixa isso para lá, esquece isso, já passou;. Não passou. Os resíduos de uma ação truculenta, como foi o golpe de 64, e a tentativa de liquidação da Universidade de Brasília foram um negócio tão sério que não pode ser esquecido;, diz.

Por gerações
O relatório indica a preocupação com o aspecto transgeracional que a busca pela verdade e pela memória nos casos de violação suscitam. Conforme consta no documento, ao se questionar violações cometidas no passado, dá-se às novas gerações a possibilidade de reflexão sobre a situação atual (leia Para saber mais). Os pedidos de intervenção militar, conforme pedem algum setores sociais que foram às ruas nas últimas manifestações, reforçam a necessidade de se construir uma memória, destaca Mateus Guimarães, sobrinho de Honestino Guimarães, estudante da UnB desaparecido em 1973. ;É preciso fazer o registro, relatar os fatos, para que as novas gerações saibam os efeitos, saibam o que foi a ditadura militar e o que ela causou às vítimas;, defende.

Homenagem

Não à toa, a comissão leva o nome de Anísio Teixeira. Ele foi uma das vítimas da repressão. O corpo do educador foi encontrado no fosso do elevador do prédio onde morava, no Rio de Janeiro. A suspeita da família é de que ele tenha sido executado a mando dos militares.

Para saber mais

Justiça de transição

O termo se refere às iniciativas de resposta às violações aos direitos humanos cometidas em regimes políticos ditatoriais. A justiça de transição tem por objetivo revelar a verdade sobre crimes passados, fornecer reparações às vítimas, reformar instituições facilitadoras de abuso e promover a reconciliação na sociedade. Não se trata de uma forma especial de justiça, mas sim de iniciativas que promovam a paz e o fortalecimento da democracia. Pretende-se, ainda, o estabelecimento de uma memória coletiva, por meio da abertura de arquivos sob tutela do governo à população, e sugere ações educativas e de conscientização do que foi o período.

Três perguntas para

 (Isa Lima/UnB Agência)

José Otávio Nogueira Guimarães, coordenador de pesquisa da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade

Quais foram as dificuldades e os desafios da CATVM?
A comissão é um primeiro passo. Conseguimos identificar muito material, muita documentação. Acho que inovamos no sentido de ouvir a comunidade, a gente quer saber o que a comunidade tem a dizer sobre o relatório. Conseguimos fazer uma primeira síntese. Tem muito a ser feito ainda, não tínhamos nem tempo nem pessoal para realizar o trabalho na dimensão que ele merece. Acho que a gente abriu um espaço e espero que se consiga, de alguma forma, dar continuidade a isso. Uma coisa importante que o trabalho da comissão mostrou é que não houve ondas de repressão. Houve uma repressão contínua, de abril de 1964 até a posse do Cristovam (Buarque, em 1985). Ela foi contínua em diversas escalas: as invasões, a montagem do aparelho de vigilância e de repressão, as expulsões.

Qual é a avaliação dos trabalhos?
É um documento que conseguiu, pelos prazos da comissão, pelos meios que ela tinha, ser bom. Não posso falar da própria cria, mas é um relatório muito bom. Há lacunas, tem coisas que a gente espera, ainda este mês, complementar. Tem capítulos que podem ser escritos e devem ser escritos. É um primeiro passo para uma continuidade desse trabalho.

Qual é a importância de se falar da justiça de transição, tanto para o presente quanto para a construção da memória?
A justiça de transição é permanente. A democracia brasileira ainda é uma democracia com muitas fragilidades. No Brasil, continuamos a fazer corpos desaparecerem, continuamos torturando nas delegacias de polícia, continuamos com resquícios do mundo autoritário. Mesmo no nosso Judiciário. Falar dessas violações é chamar a atenção para o que a gente vive aqui. Sobretudo neste momento, em que se vê manifestações na rua pedindo a volta da ditadura militar.

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