Mais grave que o diagnóstico talvez seja a projeção sobre essas desigualdades. Mal de saúde em termos econômicos, o país dificilmente terá recursos para investir o tanto que deveria no setor, conforme destaca o coordenador de projetos do Movimento Todos pela Educação, Caio Callegari. Ele explica que o pagamento do educador responde pela principal fatia do gasto em educação. Em 2018, o rendimento médio dos professores da educação básica com curso superior correspondia a 69,8% do salário médio dos profissionais de outras áreas com o mesmo nível de escolaridade. Enquanto a média salarial de quem ensina foi de R$ 3.823 no ano passado, a do conjunto dos trabalhadores brasileiros graduados ficou em R$ 5.477, segundo o Anuário Brasileiro da Educação 2019 (veja arte). Ao se comparar o salário médio dos profissionais de áreas de exatas ou saúde, a defasagem é de 50%.
Em Minas, 85,6% dos docentes do ensino básico se formaram na universidade, sendo que 36,3% deles têm pós-graduação. Em nível nacional, esses números ficam em 79,9% e 36,9%, respectivamente. Em compensação, a média salarial dos professores da rede pública vem crescendo. Nos últimos sete anos, o aumento foi de 6,4%, aponta o documento. Mas os desafios de melhor remuneração persistem e se expressam por outros indicadores. Cerca de 10% dos municípios, por exemplo, ainda não têm plano de carreira para seus professores.
Falta incentivo à especialização
As dificuldades escondidas por trás dos números aparecem no dia a dia dos profissionais de ensino e se refletem na falta de estímulo objetivo ao aprimoramento. Na sala de aula há 16 anos, o professor de ciências e biologia Ary Luiz Gonçalves, de 39 anos, trabalha atualmente em uma escola estadual no Bairro Gameleira, na Região Oeste de Belo Horizonte, e em um estabelecimento privado no Bairro São Paulo (Região Nordeste). Defendeu na semana passada sua tese de mestrado, mas, apesar do investimento na carreira, não acredita numa escalada financeira. ;Tenho a impressão, às vezes, de que essa diferença salarial é maior do que 30%. Na rede estadual ainda há uma porcentagem pequena de acréscimo no salário por causa da pós-graduação, mas não vou receber nem R$ 3 mil. Na particular não tem incentivo, a especialização não é valorizada;, afirma. ;A pós-graduação é mais para minha capacitação pessoal. O mestrado abre a possibilidade de dar aulas em uma faculdade, mas também não garante nada, porque os estabelecimentos não estão contratando em caráter efetivo.;
Ary leciona para alunos do 6; ano do fundamental até o 3; do médio. No estado, o salário líquido é de R$ 2,3 mil. ;Tenho esposa e filha. Com uma rede só é impossível sustentar a família. Queria que não fosse assim, porque é meu local de trabalho. Falta estrutura, falta compromisso de outros colegas e uma série de fatores ajuda a desvalorizar a profissão;, diz. O professor considera que não é só dinheiro que vai mudar a educação. ;Não dá para mudar o sistema de uma hora para outra. É preciso investimento não só financeiro, mas de estrutura, de material disponível para fazer trabalho diferenciado. A escola pública onde dou aula não tem verba para o transporte de uma excursão. Quando conseguimos veículo, às vezes, é doação.;
Igualdade: próxima nos planos, distante na prática
Muito mais que uma questão financeira, uma sinalização cultural. Para especialistas que analisam as disparidades de rendimento entre educadores do ensino básico e profissionais de outras áreas, demonstradas no último Anuário Brasileiro da Educação, estimular o aprimoramento dos professores é um indicador do que o país projeta para o futuro. O coordenador de projetos do Movimento Todos pela Educação, Caio Callegari, afirma que a disparidade da remuneração dos docentes é fruto do baixo investimento em educação básica. O Plano Nacional de Educação (PNE) determina a valorização dos profissionais do magistério das redes públicas da educação básica, a fim de equiparar o rendimento médio ao dos demais profissionais com escolaridade equivalente, até o fim do sexto ano da vigência do plano, ou seja, até 2020. ;Equiparar é o primeiro passo. Quando se olha para os sistemas de educação de qualidade do mundo, eles têm em comum a valorização dos professores. E não é só salarial, mas cultural, tem a ver com a imagem do docente como o profissional mais importante para o futuro do país;, diz.
Apesar de ainda muito distante do ideal, a situação avançou. Em 2012, a média salarial de um professor graduado correspondia a 61% da remuneração de outros profissionais também com formação em nível superior. Callegari chama a atenção para a necessidade de pensar uma carreira que estimule o professor a se formar, fazer cursos de formação continuada e ter experiências pedagógicas fora da sala de aula.
Por enquanto, isso parte muito mais da paixão de cada profissional do que propriamente do reconhecimento financeiro ou estímulo pelo aprimoramento. Que o digam pessoas como o professor de educação física Bruno Ambrózio Teixeira, de 33. Lecionando há 10 anos, ele tem bacharelado, licenciatura e pós-graduação. Mas, na escola particular não tem remuneração extra pela especialização. A recompensa vem apenas do estado: 5% a mais. Por 18 aulas por semana na rede, são R$ 2 mil. Além das duas redes, para dar um pouco mais de musculatura ao contracheque ele trabalha em uma clínica. ;O dinheiro é suado e se eu fosse um pai de família complicaria, teria muitos problemas;, diz.
Evolução
A história de Bruno se confunde com seu amor pela profissão. De 2006, quando tinha apenas 18 anos, até 2008 trabalhou como porteiro de uma escola particular da Região Centro-Sul de BH, sempre mirando o sonho de se formar em educação física. Morador do Bairro Conjunto Cristina, em Santa Luzia, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, trabalhava de dia e fazia faculdade à noite.
Em 2008 e 2009 foi para uma outra escola, no Bairro Funcionários, onde ocupou o cargo de disciplinário. Depois teve a oportunidade de lecionar, quando terminou a faculdade, aos 22 anos. Na família todos são da área de educação. O irmão gêmeo, Breno, tem a mesma história ; de porteiro a professor ; e a irmã também trabalha em instituição escolar, na parte administrativa. ;Escolhi o curso de educação física porque gosto. Amo o que faço. Ver o aluno caminhando é o melhor salário que recebo. E vê-los formados é muito gratificante;, diz.
Em um trabalho no qual assume diversos papéis, atuando ora como mestre, ora como pai e por vezes, psicólogo, levar sua história de vida para os alunos da rede pública é uma das formas encontradas por Bruno para estimular os adolescentes a seguir em frente. E o trabalho não é só em na escola. Em casa, é preciso se dedicar a planejamento de aulas e se atualizar sempre. ;Briga-se muito pela equidade, mas ela só virá a longo prazo.;
Desnível salarial resiste às cotas
As disparidades na educação, que começam entre aqueles responsáveis por ministrar a formação básica aos estudantes do país, se estendem a profissionais que já conseguiram o sonhado diploma do ensino superior, apesar de políticas afirmativas que buscam democratizar o acesso às universidades públicas brasileiras. É o que mostra estudo desenvolvido na Fundação Getúlio Vargas com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (PNADC) de 2018. O trabalho indicou que profissionais com o mesmo nível de formação são remunerados de maneiras distintas, dependendo da rede na qual cursaram o ensino médio e o superior. A diferença nos casos extremos pode chegar a 140%.
O trabalho indica que disparidade na educação, que se tentou amenizar promovendo o acesso de estudantes a universidades públicas por meio da Lei das Cotas, ficam escancaradas na ponta final do processo. Alunos do ensino público e privado devem ter chances de ingresso divididas meio a meio nas instituições federais de ensino superior, mas elas se perdem ao longo do curso e as desigualdades voltam à tona em um raio-x do mercado de trabalho.
De acordo com estudo do pesquisador Daniel Duque, da área de Economia Aplicada do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV Ibre), o relatório da PNADC mostra que, apesar de o país ter avançado, a desigualdade persiste. O especialista constatou que a população brasileira está cada vez mais escolarizada. Mas, ainda há uma enorme diferença de classe e entre os estudantes do ensino público e privado. Superar essa segmentação é um dos desafios do país. Segundo o estudo de Duque, formados em universidades públicas e no ensino médio privado ganhavam cerca de 140% a mais, em 2017, do que aqueles que tinham se formado em universidades privadas e no ensino médio público. Em 2016, essa diferença era de pouco menos de 114%.
;Esse levantamento mostra que, apesar de avanços, a educação superior pública brasileira ainda está longe de ser inclusiva. Há um esgotamento da melhora via Lei de Cotas e uma redução da presença de jovens de classe social mais baixa pleiteando uma vaga na universidade pública, devido ao mercado de trabalho ainda fragilizado e à necessidade de procurar um trabalho;, diz o economista.
Ano passado, de cada 100 brasileiros 17 tinham ensino superior ; um aumento em relação a 2016, quando eram apenas 15. O principal destino dos alunos de nível superior ainda é a universidade privada. Mas o levantamento mostra que as universidades públicas já são consideravelmente inclusivas: em 2018, cerca de 74% dos alunos dessas instituições tinham vindo de escolas públicas.
Mas os dados mostram que, entre 2017 e 2018, não houve avanços na inclusão. ;Os dados apontam para uma estagnação da inclusão de estudantes de ensino médio público nas universidades públicas, que não necessariamente vai melhorar;, destaca. ;E indicam que o mercado de trabalho tem aumentado sua concentração de renda em linha com tal segmentação. Apesar das cotas, ex-alunos de ensino médio privado ainda são maioria entre os que se formam em cursos mais competitivos, como medicina e engenharia;, completa.