Ana Isabel Mansur*
postado em 05/07/2019 19:09
Sob o tema central "Trajetórias, narrativas e epistemologias plurais, desafios comuns", o 3; Congresso Internacional de Povos Indígenas da América Latina (Cipial), realizado no Brasil pela primeira vez, foi encerrado nesta sexta-feira, na Universidade de Brasília (UnB). Foram três dias de conferências, simpósios, palestras e atividades culturais. O evento tomou conta de 10 espaços do câmpus, rebatizados com nomes de origens indígenas. O Memorial Darcy Ribeiro, a Reitoria e a Biblioteca Central (BCE), por exemplo, transformaram-se no Espaço Mapuche, enquanto o Instituto Central de Ciências Norte (ICC Norte) virou o Espaço Tupinambá. O Centro de Convivência Multicultural dos Povos Indígenas (Maloca), o Centro de Convivência Negra (CCN), a Associação dos Servidores da Fundação UnB (ASFUB) e a Faculdade de Direito (FD) formaram o Espaço Funi-Ô.
De acordo com a organização, o Cipial é um congresso autônomo, de livre iniciativa de investigadores de diversos países, que conta com duas instâncias organizadoras: o Comitê Científico Internacional e a Comissão Organizadora Local, a qual varia a cada edição. A primeira delas foi realizada em 2013, em Oaxaca, no México. A segunda, em 2016, na cidade de Santa Rosa, na Argentina. Neste ano, participaram 2 mil pessoas, de oito países e 30 etnias.
A professora Mônica Nogueira, dos câmpus Darcy Ribeiro e Planaltina, esteve à frente da organização desta edição, tanto no Comitê Científico Internacional como na Comissão Organizadora Local. ;Eu já participava do Comitê Científico Internacional das outras edições. Como o Cipial se realiza de maneira autogestionada em cada país por onde passa, existe também uma coordenação local;, explica a professora. Ela é doutora em antropologia social e coordena o Mestrado Profissional em Sustentabilidade junto a Povos e Territórios Tradicionais (MESPT). ;A comissão de organização aqui da UnB se deu em uma forte aliança. Nós reunimos praticamente todas as iniciativas da universidade que trabalham com a temática indígena para, de forma colaborativa, organizar o congresso;, continua a pesquisadora. ;Fizeram parte vários laboratórios, grupos de pesquisa, coletivo de estudantes indígenas e programas de pós-graduação.;
Trajetórias
A programação foi distribuída sob diferentes formatos, como conferências, simpósios, sessões de pôsteres, mostras fotográficas e de audiovisual, feira de sementes, palestras, grupos de trabalho, fóruns, oficinas, minicursos, relatos de experiências, lançamentos de livros e apresentações musicais. Ao todo, o Congresso foi organizado conforme 12 eixos temáticos: história e memória; línguas indígenas; artes, literaturas e comunicação indígena; política, cidadania e direitos indígenas; terras e territorialidades indígenas; educação para a diversidade; sociedade, ambiente e sustentabilidade; alimentação indígena; saúde e medicina indígena; gênero e etnicidade; grandes projetos, economia, produção e alternativas ao desenvolvimento; problemas sociais indígenas em contextos urbanos.
Personalidades atuantes nas causas indígenas no Brasil e na América Latina estiveram presentes e contribuíram para o direcionamento das atividades. A deputada federal Joênia Wapichana, primeira mulher indígena a advogar no Brasil, esteve na mesa de abertura do evento, na quarta-feira. A líder indígena, ex-candidata à vice-presidência e coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Sônia Guajajara, ministrou conferência na noite de quinta-feira.
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Protagonismo
A organização do 3; Cipial baseou-se, sobretudo, na compreensão de que não se trata mais de falar sobre os indígenas, como se a eles coubesse apenas o lugar de personagem. Eles devem ser tratados como autores que são, seja de suas próprias narrativas, seja percepções externas.
Assim, considerando o que os indígenas têm a dizer, como coletivos e indivíduos, as atividades do Congresso foram protagonizadas por intelectuais e ativistas indígenas, com base no diálogo, na partilha de experiências e no reconhecimento mútuo.
O aspecto da diversidade, inclusive, norteou a divisão de temas e formas do 3; Cipial. A organização do evento pontua o favorecimento do encontro e do diálogo, tanto entre disciplinas no campo da ciência e pesquisadores indígenas e não indígenas de diferentes países, povos e territórios, como entre outros profissionais e diferentes linguagens, como a literatura, as artes plásticas e o audiovisual.
O professor Michael Baré-Ticuna, da tribo Arauak, do Amazonas, em fala durante a Feira de Sementes, comemorou a implantação da disciplina de história indígena no curso de história na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). ;Foram oito anos lutando e ano passado finalmente implantaram como disciplina obrigatória na graduação e eu fiquei regozijado!” Ele, que se graduou na mesma instituição e está terminando o mestrado, também na UERJ, em história, política e cultura, contou que espera se tornar professor da matéria. ;Vão abrir concurso e eu estou me preparando. Sou o único especialista em história e cultura indígenas na UERJ, então acho que é pra mim!”
Michael, cujo nome indígena é Anaje, cursa, desde o ano passado, pós-graduação lato sensu em ensino de história indígena na educação básica no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. A instituição, cuja fundação data do fim do século XIX, é uma das mais tradicionais do Brasil e foi equiparada aos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia em 2012. ;Eu já estive em situação de rua e resolvi pagar toda a violência que recebi com amor. Eu acredito na emancipação do povo indígena por meio da educação. Essa é a minha missão;, conta o professor. ;A matriz principal do povo brasileiro, a indígena, é desconhecida. Mas isso não é aleatório, é por causa de uma historiografia vertical que impôs a dissociação do povo indígena. É nossa vez de resgatar esses valores.;
Trocas
Uma das últimas atividades do 3; Cipial, a Feira de Sementes sintetizou tudo que o evento buscou abordar. Em ato simbólico, participantes do Congresso, entre indígenas e não indígenas, reuniram-se no centro da Maloca, estenderam sobre panos as sementes trazidas e trocaram entre si amostras das mais diversas regiões.
Liziane Neves, estudante de geografia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), participou pela primeira vez do Cipial. Ela faz parte do coletivo Colher Urbano, que desenvolve uma horta de experimentação de práticas agroecológicas e incentivo à economia solidária no câmpus Nova Iguaçu da UFRRJ.
;É a primeira vez que participo do Cipial. O coletivo já iniciou a montagem de uma horta urbana na UFRRJ, onde testamos e fazemos experiências agroecológicas;, elucida a aluna. ;A baixada fluminense tem uma área rural, então muitas pessoas têm o conhecimento do plantio e do cuidado com as culturas. Os integrantes trazem o que aprenderam com a família e há uma troca de experiências e conhecimentos.;
A troca pôde ser feita também na Feira. Entre as sementes que Liziane trouxe para a Cipial, estão exemplares de bertalha, quiabo estrela e quiabo paulista. Algumas das espécies que ela vai levar de volta incluem exemplares de sucupira e milho preto.
A professora Mônica explicou que a Feira de Sementes foi uma atividade inédita desta edição. ;De maneira mais estruturada e com essas dimensões, foi a primeira vez. No 1; Cipial, em Oaxaca, houve uma troca espontânea. Então, nesta edição, optamos por organizar e estimular a realização da atividade.;
Eterna aprendiz
A escritora e socióloga Moema Viezzer também esteve presente na edição brasileira do Cipial, onde lançou seu último livro, "O maior genocídio da história da humanidade - mais de 70 milhões de vítimas entre os povos originários das Américas", escrito em parceria com Marcelo Grondim Nadon.
;Foram quatro anos pesquisando e escrevendo. Foi um privilégio poder divulgar o livro em um momento tão útil como o de um contexto de um congresso sobre os povos indígenas;, comemora a escritora que, em 2005, foi uma das 52 brasileiras indicadas para o Prêmio Nobel da Paz, em uma ação que propunha a candidatura de mil mulheres.
;Eu costumo chamar os povos daqui de indígenas da América Indioafrolatina. Eu já considero um insulto chamá-los de ;índios;, dizer apenas ;latinos;, então, é mais errado ainda!”, ensina a socióloga. ;E eu pergunto: como nós, brancos, vamos aprender, agora, a convivência na diversidade? Isso nunca foi ensinado, então é um trabalho grande.;
A autora explica que os dados chocantes que intitulam a obra são da colonização até o início do século XX, em toda a América. ;A marca de tantos milhões foi atingida por meio das muitas guerras, das epidemias e do trabalho escravo, principalmente na mineração.; Ela chama a atenção para como as coisas se deram: ;Nós precisamos de mais publicações que contem, de fato, o que aconteceu. A história que aprendemos foi mal contada.;
Moema, que idealizou e fundou a Rede Mulher de Educação, organização que, há mais de 30 anos promove e facilita a interconexão entre grupos de mulheres no Brasil, ressalta o foco na visibilidade: ;Nós temos que entender o direito que eles têm, por exemplo, à demarcação de terras, e que, na verdade, não deveria existir porque as terras eram todas deles;, reflete. ;Agora, é manter o espírito de eterna aprendiz, como eu me orgulho e gosto de ser.;
Saldos positivos
Para Mônica, o 3; Cipial termina em lucro. ;Os saldos são muitos e muito significativos. O primeiro foi radicalizar a opção, não só pela presença e participação, mas pelo protagonismo indígena no Congresso.; Para ela, uma das boas novas desta edição foi o destaque da presença indígena na universidade. ;Há também os intelectuais que não estão na universidade, mas devem participar de atividades como essas. Existe a emergência de uma intelectualidade indígena em toda a América.;
Outro resultado destacado pela organizadora refere-se à participação feminina. ;O Congresso foi majoritariamente organizado por mulheres. É importante ressaltar que conseguimos realizar um grande evento da forma que as mulheres trabalham: de maneira bastante colaborativa, simétrica e horizontal;, orgulha-se.
Ela conclui: ;Logo mais vamos anunciar o 4; Cipial e a expectativa é que continue esse espaço de construção de alianças pela causa indígena, que é uma causa de todos. É sobre proteger la madre tierra.;
*Estagiária sob supervisão de Ana Sá