Jornal Correio Braziliense

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Entidades entram na Justiça devido a cancelamento de vestibular para trans

Vestibular específico para o público trans foi cancelado em dia 16 de julho, um dia após a abertura das inscrições. O cancelamento foi anunciado pelo presidente Bolsonaro no Twitter



Uma ação civil pública foi protocolada, nesta quinta-feira (8/8), motivada pelo cancelamento do primeiro vestibular específico para transgêneros e intersexuais promovido este ano pela Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), um dia após a abertura de inscrições. A ação foi proposta pelo advogado Paulo Iotti, um dos atuantes da ação que criminalizou a homofobia no Brasil, na 8; Vara da Justiça Federal do Ceará. Ele representa o Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero (GADVS); a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros; e a Articulação Nacional das Transgeneros (Antra).

A assessoria da Justiça Federal do Ceará acredita que ação deverá ser analisada e distribuída na semana que vem. A reportagem tentou contato com Iotti e a Antra, para ter acesso à petição inicial, mas ainda não obteve retorno até o fechamento do texto. O Ministério da Educação (MEC) informou que ainda não foi notificado sobre a ação.

Recomendação

Além da ação, a Defensoria Pública da União (DPU) recomendou à Unilab que promova medidas para ;restabelecer o edital do vestibular, em sua forma específica, cancelado abruptamente, submetendo a avaliação quanto o cancelamento ou não do instrumento ou a edição de um novo edital específico aos órgãos efetivamente competentes para deliberar sobre políticas de acesso à instituição, [...], de modo que a decisão unilateral promovida pela reitoria quanto ao tema é medida tomada por autoridade incompetente, em exorbitância das atribuições elencadas para a função no estatuto da instituição;.

A DPU ainda solicita que a instituição se abstenha de promover ;qualquer medida de caráter criminalizador, sancionatório, persecutório, discriminatório entre outros comportamentos que visem a punir direta ou indiretamente, de forma individualizada, quaisquer dos estudantes que exerceram o legítimo direito constitucional de manifestação e liberdade de pensamento, de opinião e reunião no espaço público da Universidade;.

Protesto

O campus Liberdade da Unilab vinha sendo ocupado por estudantes e pessoas contrárias ao cancelamento do vestibular desde 17 de julho. Mas, segundo nota da própria Unilab, o campus, que teve suas atividades administrativas paralisadas devido ao movimento de ocupação, foi liberado nesta sexta-feira (9/8). ;Informamos que nesta sexta-feira, 9 de agosto, os últimos ocupantes que ainda permaneciam nas dependências do Campus encerraram a ocupação. O Campus da Liberdade ficará totalmente fechado nesta sexta-feira para que seja feita uma avaliação da estrutura e do patrimônio institucional. Os setores lotados no Campus da Liberdade devem retomar suas atividades nesta segunda-feira, dia 12;.

Entenda o caso

O presidente Jair Bolsonaro anunciou em 16 de julho, por meio de sua conta no Twitter, que a Unilab suspenderia e cancelaria o vestibular específico para transgêneros e intersexuais. O processo seletivo havia sido anunciado uma semana antes, com a oferta de 120 vagas em cursos de graduação presencial nos campi do Ceará e da Bahia.

"A Universidade da Integração da Lusofonia Afro-Brasileira (Federal) lançou vestibular para candidatos TRANSEXUAIS, TRAVESTIS, INTERSEXUAIS e pessoas NÃO BINÁRIAS. Com intervenção do MEC, a reitoria se posicionou pela suspensão imediata do edital e sua anulação a posteriori", tuitou o presidente, sem dar mais detalhes.

Dois dias após essa declaração, em cerimônia sobre os 200 dias de governo, Bolsonaro afirmou ainda: "Botamos um ponto final nessa questão, até porque o vestibular ia ser feito baseado em um decreto de 2012, o ministro, os senhores sabem quem era [em referência ao petista Fernando Haddad], naquela época. E esse trabalho que a gente faz buscando corrigir as coisas, dar um norte. Não posso ter um ministro falando favoravelmente ao desarmamento se a minha linha não é essa".

A seleção seria a primeira nessa modalidade em todo o país. Do total de vagas, 69 seriam para o Ceará nos seguintes cursos de graduação: administração pública (cinco), agronomia (duas), antropologia (10), ciências biológicas (duas), enfermagem (seis), história (10), humanidades (10) letras/língua inglesa (uma), letras/língua portuguesa (três), matemática (três), pedagogia (oito), química (quatro) e sociologia (cinco). Para a Bahia estavam reservadas 51 vagas nos cursos de ciências sociais (oito), história (oito), humanidades (oito), letras/língua portuguesa (nove), pedagogia (oito) e relações internacionais (10).

Segundo a Unilab, o ingresso desses novos estudantes estava previsto para o segundo semestre. O público-alvo eram candidatos transexuais, travestis, pessoas não binárias e intersexuais, que tivessem concluído o ensino médio. As categorias foram definidas segundo glossário da Organização das Nações Unidas (ONU). O processo seletivo incluiria uma ;autodeclaração de identidade;, que seria confirmada por alguma instituição LGBT indicada pela universidade.

Na época, o Ministério da Educação (MEC) confirmou ter questionado a legalidade do processo seletivo da Unilab via Procuradoria-Geral da República (PGR). O motivo seria o fato de a Lei de Cotas não prever vagas específicas para o público-alvo pretendido por esse vestibular. Além disso, segundo o MEC, faltou parecer, por parte da universidade, sustentando a legalidade da iniciativa. "A universidade não apresentou parecer com base legal para elaboração da política afirmativa de cotas. Por esta razão, a Unilab solicitou o cancelamento do certame."

Em nota, a presidente da Associação Nacional de Travestis e Transexuais, Keila Simpson, criticou a suspensão do vestibular. Segundo ela, citando uma pesquisa da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), cerca de 82% da população trans no país sofrem com problemas de evasão escolar. "A população de travestis e transexuais é hoje um dos grupos que mais sofre discriminação na sociedade e vem sendo vulnerabilizada pela falta de políticas públicas que garantam acesso a direitos básicos. E a educação é um deles. Não há razão para o governo interferir em um processo deste porte tendo em vista que as instituições de ensino superior têm autonomia para estabelecer seus próprios mecanismos de acesso", afirmou.


* Com informações da Agência Brasil