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Escola pública de Ceilândia, CEM 2 aprova 47 estudantes na UnB

A direção do estabelecimento espera que chegue a 100 o número de estudantes que vão ingressar em 2020 na instituição após a divulgação dos resultados de todas as chamadas do Programa de Avaliação Seriada (PAS) e do Acesso Enem

Correio Braziliense
postado em 14/02/2020 20:08
Para os alunos do Centro de Ensino Médio 2 (CEM 2) de Ceilândia, a caminhada até a universidade federal tem um sabor diferente, mas a trajetória dos aprovados, marcada por determinação, está apenas no início.
 
Com o resultado da primeira chamada dos processos seletivos pelo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e pelo Programa de Avaliação Seriada (PAS), a escola teve 47 alunos aprovados na Universidade de Brasília (UnB). O colégio ainda não computou se houve estudantes selecionados na segunda chamada do PAS.
 
Escola teve 35 alunos aprovados só na primeira chamada do Programa de Avaliação Seriado (PAS) e mais 17 após o resultado do Sistema de Seleção Unificada (Sisu)
A expectativa do diretor, Eliel de Aquino, 60 anos, e do vice-diretor, Halbert Cruz, 44, é de que, com as próximas chamadas e as listas de espera, o número chegue a quase 100 alunos classificados para estudar na Universidade de Brasília, um resultado acima da média para uma instituição de ensino pública.
 
Para o diretor Eliel, o sucesso não tem segredo e parte de um engajamento da equipe pedagógica que incentiva a participação de alunos e responsáveis. “Quando chega um novo professor e entende o que o grupo vem fazendo, ele, de forma voluntária, se interessa em participar dos projetos, comparecer aos encontros, dar aulas preparatórias, se envolver com o clima interno”, diz.
 
Luma Holanda, 18, aprovada em medicina pelo PAS e em enfermagem pelo Acesso Enem, sentiu o impacto desse incentivo e atribui aos professores a aprovação, em especial ao de história, Carlos Wendel. “Se não fosse por ele, eu não teria passado agora, estaria fazendo outro curso que não era exatamente o que queria”, afirma.
 
A jovem sonhava com medicina, mas, por ser estudante de escola pública, achava que o desejo era muito ambicioso para a realidade em que se encontrava. “Eu não ia colocar medicina, tanto que coloquei enfermagem no Acesso Enem. Pensei que era muita concorrência, as pessoas fazem cursinho, tem muito mais privilégio do que eu.” 
 
Mas os professores a estimularam. “Diziam que, apesar de sermos de escola pública, nós conseguimos, sim, entrar em um lugar mais elitizado, com esforço e as pessoas certas ao nosso lado”, lembra a jovem.
 
Agora, aprovada, Luma incentiva outros: “Nenhum curso é um sonho distante ou longe de sua realidade. Você precisa apenas de apoio e dedicação. Espero que isso sirva de incentivo para outras pessoas e que elas pensem: se aquela menina da mesma escola que eu conseguiu passar, sem fazer cursinho caro ou nada disso, eu também consigo”.

Luma Holanda (18) atribui sua aprovação ao incentivo do professor de história:
Morador de Águas Lindas (GO), Alef Guedes de Melo, 18, levava, em média, uma hora e meia para chegar à escola todos os dias. Aprovado em letras - francês pelo PAS, o jovem fez curso de francês no Centro Interescolar de Línguas de Ceilândia (CILC) e relata que chegou à escola um pouco perdido sobre a escolha profissional. Lá recebeu auxílio dos educadores.
 
“Meus professores me inspiraram a escolher, embora quisessem que eu fizesse medicina ou direito”, recorda. Alef passava o dia na escola, escolheu o CEM 2 por ter certeza de que teria mais chances de ingressar no ensino superior graças à instituição. “A fama da escola era muito boa”, afirma.
 
A gestora pública Glaucia Regina Torres, 38, concorda. “É muito bonito ver as metas da escola dando certo, um projeto que a gente acredita”, elogia. Mãe de Geovana Torres, 17, aprovada em farmácia pelo PAS, Glaucia conta que a jovem é a primeira pessoa da família a ingressar na universidade federal.
 
“Quando terminei o ensino médio, em 1998, a pessoa de escola pública aqui da Ceilândia que passava na UnB era como se fosse um alien. É um orgulho muito grande saber que minha filha, que estudou a vida inteira em escola pública, foi aprovada”, conta Glaucia.

O sarau

Para incentivar os estudantes, a escola desenvolve diversos projetos e atividades complementares. Existe o Consciência negra, em que todas as turmas participam de um teatro, chamado Filosoart. Os alunos apresentam uma peça sobre temas estudados na aula de filosofia. No festival de música, os estudantes do 2° e do 3° anos interpretam musicais clássicos em língua estrangeira, podendo optar por inglês ou espanhol.
 
No horário contrário às aulas, em dias alternados da semana, professores da escola e, às vezes, convidados e voluntários dão aula pré-vestibular e pré-Enem para alunos do 2° e do 3° anos (sendo que o diretor deseja ampliar o projeto para o 1° ano). Além disso, cada turma do último ano escolhe um professor como padrinho.
 
As irmãs Marina (10) e Geovana (17) ao lado da mãe, Glaucia (38) 
Entre os projetos de incentivo aos estudantes, o sarau é o mais popular. Idealizado pela professora de português Sônia Cotrim, ele estimula os estudantes a fazerem apresentações artísticas baseadas nas obras cobradas pelo PAS. “São apresentações de dança, música, expressão corporal, utilizando temas cobrados nas obras do PAS”, explica o vice-diretor Halbert Cruz.
 
“Acho que o sarau é um desses projetos muito importantes para que os alunos tenham mais aproximação com esse conteúdo de vestibulares”, classifica o diretor Eliel de Aquino. Para Rian Guilherme Muniz , 18, aprovado em artes cênicas pelo PAS, o projeto é “como se fosse um aulão por meio do teatro”. O sarau ocorre no fim do ano letivo e é aberto à comunidade.

O diretor menciona a ideia de implantar cursinhos preparatórios para vestibular, abertos à comunidade, no período noturno. “Existem até professores que já se mostraram interessados em colaborar”, conta Eliel. Recém-empossada, a nova gestão que teve início em 1° de janeiro deseja melhorar a estrutura da escola e deixá-la mais aconchegante para os alunos.
 
Se possível, proporcionando até mesmo salas para estudo. Assim que assumiram, os novos gestores fizeram mudanças. "Na entrada da escola, tinha a figura de uma águia americanizada. Nós tiramos e colocamos o  retrato de Paulo Freire", relata o diretor. Para o futuro, o plano é seguir com a ideia de implementar a cultura brasileira no cotidiano da escola.
 
“O que nós queremos é colocar no CEM 2 pensadores, para que isso fique com os nossos alunos, pessoas que pensaram o nosso país, nossa cultura e não uma cultura estrangeira. Se queremos representatividade de educação, não vemos alguém melhor que Paulo Freire, que, pela legislação brasileira, é o Patrono da Educação no Brasil”, diz o diretor.
 
“Nós queremos que o CEM 2 seja uma escola da Ceilândia, não queremos que esteja uma águia ali, mas um calango desenhado, algo bem nosso”, brinca o educador.

Barreiras invisíveis

Para o morador da Ceilândia Gabriel Bezerra de Souza, 18, aprovado em jornalismo na UnB pelo Acesso Enem, a alta taxa de aprovações da escola tem um segredo: o ensino para a vida. Gabriel conta que as outras escolas em que estudou proporcionavam apenas o aprendizado para provas. Assim, ele se surpreendeu ao encontrar no CEM 2 uma realidade onde outras habilidades eram incentivadas.
 
“Quando você olha uma escola pública que aprovou cerca de 50 pessoas na UnB, coisa que nem algumas escolas particulares conseguiram, nota que alguma coisa de diferente tem nessa escola. E o que é? Aqui, aprendemos quem somos e o lugar que se pode alcançar na sociedade para depois espalhar conhecimento em outros lugares, como a faculdade. Com nosso poder, podemos atingir até o mundo”, explica o jovem.

Para Gabriel, a trajetória até a faculdade é muito mais árdua para quem mora na periferia. “Quando você tem um status social menor, tem que lidar com o trabalho e atividades fora a escola e isso dificulta muito.” Além de estudar, ele trabalhava durante o ensino médio.
 
Isso prejudicou o ingresso na faculdade após a formatura, em 2018. “Eu tinha sempre que ajudar em casa e trabalhar. Quando eu me formei, comecei a estudar para o Enem. Eu já tinha sido aprovado na UnB em 2019 pelo Sistema de Seleção Unificada (Sisu), mas não ingressei no curso por causa do trabalho. Quando você tem uma situação social inferior, tem que pensar em muitas coisas além de entrar na faculdade”, pondera o futuro jornalista.
 
Filho de pais analfabetos, Gabriel disse que a família nunca imaginou aonde ele chegaria. “Para eles, saber ler e escrever já era uma grande felicidade, ter um filho na quarta melhor federal do país era inimaginável”, comemora.
 
Fazendo planos para a carreira, o jovem conta que é apaixonado pela escrita, inspirado pelos pais e pelo projeto de extensão da Faculdade de Comunicação (FAC) SOS Imprensa.
 
Sonha em publicar romances e textos que possam inspirar outras pessoas como ele. “Quando você é negro e pobre e chega a algum lugar mais elitizado, tem o dever de ajudar outros iguais a você a chegar àquele mesmo espaço. A universidade pública é nosso direito”, defende. 
 
 

Engajado, o estudante reflete: “É bem estranho quando você começa a pensar como a Universidade de Brasília foi criada, ela fica bem no cantinho do Plano Piloto, perto do Lago Sul, da Asa Norte...". Distante de onde o jovem cresceu. "Ceilândia foi criada bem longe do Plano Piloto”.
 
Em março de 1971, quando as ocupações irregulares no centro da capital federal começaram a preocupar o governo, Veras Prates, esposa do então governador Hélio Prates, dirigiu a campanha para a criação da Ceilândia. A origem do nome vem da sigla CEI, que significa Campanha de Erradicação de Invasões.
 
“Agora, que as pessoas que moram longe do Plano estão conseguindo espaço, criou-se outro problema que é o da locomoção. Eu vou ter que sair de casa entre as 4h30 e as 5h da manhã para estudar", revela. O que não impedirá a formação. "Se você conseguiu estar na UnB, você tem que sair da Ceilândia e ir, não pode ser empecilho”, diz Gabriel.
 
Atualmente, a região é a mais populosa do DF, com população estimada de 489.351 habitantes em 2015, segundo pesquisa da Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan). “Colocaram a UnB longe de nós, mas nós vamos até ela”, afirma o estudante.

Apoio na universidade

As ex-alunas do CEM 2 Dayana Taína da Silva, 22, Juliana Stéfane Carvalho, 21, e Lorrane Braz, 23, atualmente cursam pedagogia, serviço social e terapia ocupacional, respectivamente, na UnB e relatam a alegria de ver mais ex-alunos da escola ingressando na universidade.
 
“Eu gosto de ajudar, acho muito importante. Quando eu entrei, tive medo, as pessoas diziam que a UnB era muito grande e eu não conhecia ninguém”, afirma a estudante de serviço social Juliana.
 
As ex-alunas do CEM 2 relatam o apoio dos educadores do colégio, mesmo depois de formadas, principalmente no caso da professora Regina Cotrim, de sociologia, e o incentivo dos educadores nos percalços que encontram na universidade.
 
“Às vezes, a gente se questiona se merece estar naquele espaço, por ser da periferia, baixa renda, negro... Os professores nos ajudam nisso”, diz Lorrane, estudante de terapia ocupacional.
 
As ex-alunas Lorrane Braz (23), Dayana Taína da Silva (22) e Juliana Stéfane Carvalho (21) 
Juliana diz que a diferença é nítida e quase a fez desistir do sonho. “Alguns alunos do meu curso já me falaram que eu não deveria estar lá, eu queria trancar o curso, sair da UnB. Falei com meus professores do CEM 2 e eles me disseram: olha, essas coisas acontecem, mas é importante você estar lá. A UnB é o seu lugar.”
 
Juliana disse que alguns professores da UnB não entendem os desafios do aluno que mora longe. "Mas os docentes do CEM ficam felizes com as nossas conquistas.” As alunas contam que a professora Regina tem grupo no WhatSapp para fazer ponte entre os ex-alunos e os atuais. 
 
“Ela acha importante falar das nossas vivências no câmpus para que os estudantes do ensino médio percebam que a UnB é para eles também”, diz Juliana. Dayana, estudante de pedagogia, conta que, devido ao apoio da escola, conseguiu superar os tabus impostos a pessoas diagnosticadas com deficiência intelectual.
 
Hoje, ela incentiva colegas na mesma situação. “Eu dou palestras em outras instituições sobre a questão das pessoas com deficiência”, diz ela.

Determinação

O estudante Thasso Veras Firmino, 18, foi aprovado em enfermagem pelo PAS, morador de Ceilândia, precisou personificar o significado da palavra "determinação". Primeiro integrante da família a conquistar uma vaga numa universidade federal, o filho mais novo da família teve uma vida marcada pelas mazelas sociais.
 
Ele só conheceu algum tipo de conforto quando começou a trabalhar. “Na infância, minha irmã era quem cuidava de mim, comprava o que eu precisava. Hoje, eu tenho roupa, o que calçar, mas precisei trabalhar”, conta.
 
Apaixonado pela área da saúde, o futuro enfermeiro enfrentou uma árdua rotina, que muitas vezes impedia seus estudos. No último ano do ensino médio, ele trabalhava como auxiliar de escritório no Fórum de Ceilândia.
 
“Eu digo para as pessoas: se você quer trabalhar no ensino médio, só trabalhe se for uma necessidade. Se tem a oportunidade de só estudar, faça isso.”
 
Tasso Veras Firmino (18), aprovado em enfermagem pelo PAS 
Já vivendo uma dupla jornada, dividindo-se entre a escola e o trabalho, em novembro de 2019, reta final da maioria dos vestibulares, Thasso precisou enfrentar um terceiro obstáculo: a mudança de cidade. Sua mãe quis se mudar para  Valparaíso, Região Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal e Entorno (Ride), 38 quilômetros distante de Ceilândia.
 
“A reta final é a mais crucial, você tem que estar bem psicologicamente, fisicamente, em tudo. Eu não estava, não dormia direito, meu psicológico estava abalado e havia a cobrança pessoal”, relata ele.
 
Para chegar à escola, Thasso acordava por volta das 4h30 e, ainda assim, perdia os dois primeiros horários. “Todos os dias, eu chegava durante o terceiro horário.” Se não tivesse o apoio do corpo docente da escola, teria sido reprovado no último ano.
 
“Se eu tinha um teste nas primeiras aulas, eles transferiam para as últimas. Assim eu tinha a oportunidade de fazer”, comenta. Foram também os professores que o incentivaram a prestar vestibular. “Eu não queria ir para a UnB, queria trabalhar por causa das dificuldades financeiras e problemas familiares, meus professores que me incentivaram. Se não fossem eles, não estaria na universidade agora”, conta.

Mas não foi só durante o vestibular que o jovem enfrentou dificuldades para dar continuidade aos estudos. Em 2013, no 6º ano do ensino fundamental, Thasso foi surpreendido pela mudança para o Piauí. Com dificuldades financeiras, a família precisou ir morar com a avó paterna.
 
Entretanto, com o ensino precário e a falta de oportunidades, o estudante e a irmã sentiram necessidade de voltar para Brasília depois de sete meses. Com a separação dos pais e o abandono paterno, precisou trabalhar pela primeira vez enquanto cursava o ensino fundamental.
 
“Eu e minha irmã tivemos que trabalhar por necessidade. O que eu mais queria era só estudar” relata. “Meus pais não foram presentes. Muita gente tem uma relação boa com os pais, eu nunca tive isso. O meu era alcoólatra. Minha irmã era quem cuidava de mim. Ela foi a primeira pessoa para quem liguei quando passei na UnB”, descreve.

Hoje, preparando-se para iniciar à faculdade, Thasso mora com os tios e faz planos para ajudá-los em casa. O jovem pretende pedir auxílio social à universidade. “Eu tentei não me deixar abalar, fui muito forte. Minha trajetória foi complicada, mas me fez ver que precisamos valorizar o que temos. Dei valor às pequenas oportunidades que eu tive.”
 
Qando questionado sobre uma palavra para resumir seu caminho até aqui, ele não exita em dizer: “Determinação!”. É também isso que ele aconselha que outros interessados em seguir a mesma trajetória tenham. ”Você pode ser um gênio, mas, se não tiver determinação, não buscar o que almeja, nunca vai conseguir.”
 
*Estagiária sob supervisão de Ana Sá e de Ana Paula Lisboa

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  • Foto: Nicolas Braga/Esp. CB/D.A Press
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